terça-feira, 23 de agosto de 2011

Amor em Versos

Canções de amor são tão fáceis de serem escritas... Basta que você diga tudo aquilo que pensa saber sobre a vida e sobre os sentimentos... Não precisa ter certeza de nada, pois ninguém quer ter certeza de coisa alguma... Achar que se sabe tudo sobre todas as coisas é sempre mais fácil... E natural...

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Nascer.
Crescer.
Correr.
Evoluir.
Vencer.
Passar à frente.
Conquistar.
Ser.
Ter.
Fazer.
Chegar lá.
Mesmo sem saber onde lá é.
Mesmo sem saber se há algum lugar.

Descansar.
Morrer,
Com oitenta anos,
Esperando a recompensa
De uma vida bem vivida,
Sem ofensas, sem trapaças.
Um lugar no paraíso,
Com árvores tão verdes,
De panfletos, de novelas,
Sentado ao lado de Deus
E de todos que já foram.
 
Segure na mão de Deus
E não olhe para trás.
Se você olhar, não vai conseguir.
Vai parar.
Vai desistir.
Talvez acorde e perceba
Que não devia ter corrido tanto.
Que não valeu, assim, tanto a pena.
Que só resta lamentar.
Porque você não vai voltar.
Não vai.
Não.

Você foi atiçado,
Impelido a seguir adiante,
Como cão que ataca
Por instinto.
Por ver outros avançarem
Em uma presa que não é sua,
Mas apenas por ser presa,
Fraca,
Ridícula,
Engraçada,
Não precisa de mais nada
Para ser violentada.

A dor cai bem para os fracos.
Para os que ficam.
Para os que param.

Essa guerra nunca foi sua,
Mas você lutava.
Ah! E como lutava!
Com unhas e dentes,
E sangue,
E suor.
Porque um dia te disseram
Que era bonito,
Que tinha que ser assim,
E você acreditou.
Desacreditou.
Mas aceitou
E acreditou mais uma vez.

E agora é a hora.
Você e você,
Na última conversa.
No acerto de contas.
As lembranças da beleza
E das bebidas.
Das noites mal dormidas
Por pura vontade própria.
Da sua garota,
Não mais garota,
Que partiu antes de você,
Como partiram os filhos,
Porque a vida quis assim.

Ou terá sido Deus?

Mas esses, os filhos, são de outra ausência.
Voluntária.
Partiram porque quiseram.
Porque não te querem
Mais.
Porque um dia quiseram,
Precisaram.
Mais precisaram do que quiseram,
Na verdade.
Mas, no fim, dá no mesmo.
Não se explica a tristeza.

Dívidas pagas.
Um último beijo
Em uma foto velha.

Adeus,
Que Deus te espera.
Mas não demore
Mais.
Já se passou tempo demais.
Há muito que você queria
Chegar,
E chegou,
Enfim, o momento.

Nada se mostra.
Ninguém te espera.
Ninguém te abraça.
Nada te resta.

Você chegou lá,
E agora não há mais volta.
Mas pouco importa,
Pois, querendo ou não,
Você ficará.

Meus parabéns,
Disse a vida,
Você chegou lá.

Sejá lá onde for.
Se for algo onde é lá.

Você chegou.
Você chegou lá.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Leviano


- No que pensa, meu amigo? - Disse o rapaz, sentando-se ao lado do robô.

- Nas coisas da vida, eu acho. Há tanto em que se pensar...

- Concordo, concordo. Mas pelo que vejo, é sobre algo em especial, não é? Você me parece muito concentrado para alguém com pensamentos esparsos...

- Sim. É verdade.

- E no que pensa, então?

- Na leviandade dos sentimentos... Tão natural... Tão assustadora... Entende?
Uma pequena pausa antes de continuar. Quando recomeçou, suas palavras saíram impregnadas, carregadas dos mais diversos sentimentos; raiva, dor, tristeza, angústia, decepção. Todos juntos, fundidos em uma só torrente de emoção.
- Nós amamos, deixamos de amar, amamos novamente! Fazemos juras eternas que nunca serão honradas! Esquecemos o inesquecível! Superamos o insuperável! Aqueles a quem tanto queremos em determinado momento, mais além se tornam memórias, apenas. E nem sempre boas, diga-se de passagem! É fato que, quando falamos de amor, existem inúmeras vertentes desse mesmo sentimento. Amor de mãe, amor de pai, de irmão, de amigo... Esses, inclusive, podem acabar desfigurados, também... Mas eu me refiro, mesmo, ao amor entre dois amantes! - O robô parou por um instante, analisando a própria frase. - Amor entre dois amantes... Desculpe a redundância, mas creio que me faço entender, não?

- Claro, amigo... Claro... Continue, por favor...

A máquina recomeçou com o mesmo vigor de antes. - Quantas amizades quebramos por esse sentimento? Quantas histórias pacatas e estáveis rendem-se a momentos de êxtase, de euforia, por nada? Ou por quase nada, melhor dizendo... Afinal, se o que levamos dessa vida são recordações, essas também contam, certo? Mas ainda assim eu me pergunto... Por quê? Por que quebramos essas barreiras, tão poderosas e proporcionalmente tênues? De onde vem esse desejo de subverter a pureza? De transformar risos embriagados e abraços sem malícia em beijos e intimidades? Será que a confidência e a intimidade não podem acompanhar, sem tentação alguma, os amigos?
Uma nova pausa. No recomeço, mais calma. - Bem, creio ter me desviado demais do meu pensamento inicial... Mas é que há tanto com o que se indignar! Peço desculpas, amigo... Não duvido de sua capacidade de assimilação, mas minha alma racional me obriga a não deixar dúvida alguma. Recapitulando: Falávamos da leviandade... Do depois... Daquilo que vem após o final... Sei que sob outra ótica, tudo o que eu disse poderia ser resumido com uma única palavra: superação. Superar as dificuldades e as tristezas para seguir em frente... Mas será, mesmo, superação? Não será esse, apenas, mais um apelido carinhoso para a inconsequência? Aliás, não sei se esse seria o termo correto, também... Banalidade? Frivolidade? Desconsideração, talvez? É até difícil definir, pois não sei se soterrar o passado é algo instintivo ou racional... - Seus olhos opacos, perdidos em algum lugar à sua frente, deixavam claro que ainda havia muito a ser dito, que pensamentos e reflexões engalfinhavam-se em sua mente, disputando a titularidade daquela consciência, mas que, por ora, aquilo era tudo.

Uma fisgada de culpa se fez sentir no peito do jovem. Ele era humano. Humano e leviano, como todos os humanos. A vergonha revirou-se no estômago do rapaz, tentou subir pela garganta e sair pela boca, mas foi engolida seca e duramente. Ele respirou e permaneceu em silêncio por alguns instantes. O que poderia dizer? Com o que rebateria os questionamentos do amigo? Respirou fundo, ficou em silêncio por alguns momentos e, em seguida, fez aquilo que as pessoas fazem de melhor: dissimular. O rapaz riu e repousou o braço nas costas do amigo, dando-lhe tapinhas no ombro. Falou em tom igualmente terno e zombeteiro.
- Ah! Nossa! Mas que discurso! Aliás, que belo discurso, hein? Vou precisar de um bom tempo para processar tanta informação... - Mentira. Ele apenas não queria dizer nada. Não estava disposto a entrar em uma guerra perdida. - Por acaso está apaixonado, meu amigo? Ou será que esteve?

- Bem, já estive, sim, mas...

- Ah! Agora entendo!

- Entende? Mas...

- Tudo bem, tudo bem! Não precisa dizer nada, amigo! Dessas coisas do coração eu entendo! - Ele não entendia e sabia disso, mas preferia acreditar que entendia, assim como a maioria.

- Bem, não seriam do coração, exatamente... Acho que seriam mais... - Ele iria dizer "razão", mas foi atropelado, novamente.

- Amigo! Veja só! - A raiva quase escapou, mas foi abafada pela falsa tranquilidade. - Não se desgaste tanto com isso... Você nem ao menos é humano! - O rapaz abriu um largo sorriso. O robô não retribuiu. Ao contrário do que ele esperava, o sorriso não descontraiu, nem colocou um ponto final.

- Concorda comigo? Concorda que você não é humano?

- Sim. - Havia tanta coisa por trás daquela resposta curta.

- Então? Deixe isso pra lá! Apenas viva!

- Eu gostaria, mas não consigo.

- É claro que consegue! Todos conseguem!

- Eu deveria conseguir, mas não consigo. Eu realmente deveria! Afinal, se fui feito seu semelhante, eu deveria pensar e agir como você, não? Como todos vocês! Isso é, no mínimo, curioso! Por que, então, eu penso diferente? Por que não consigo apenas ignorar e seguir em frente? Por quê? Seria tão mais simples aceitar as coisas como elas são, ou como parecem ser! Diga-me, amigo! Diga-me! Por que não posso ser como você? - Em sua voz já não havia a angústia de antes. As palavras, agora, eram ditas com uma ingenuidade tocante, quase infantil.

O rapaz levantou-se lentamente. Uma estranha sensação apoderou-se de seu interior. Sentia sua cabeça coçar por dentro, como se milhares de pequenos bichinhos o roessem lenta e dolorosamente, provocando um chiado ensurdecedor, capaz de abafar seus próprios pensamentos. Ele sentia a dor de uma nova idéia, penetrando e dilacerando sua mente petrificada. Visões opostas travavam uma batalha cruel e sangrenta. E esse sangue, muito amargo, escorreu e afogou sua língua, a qual cuspiu palavras tão amargas quanto o próprio sangue derramado.

- Bem... - Disse o jovem, dando as costas ao amigo, tentando demonstrar firmeza.

- Você sabe o que há de errado comigo, amigo!?

- Não. Mas você, sem dúvida alguma, está com defeito.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Rachel

Rachel despertou, mas permaneceu imóvel na cama. Os braços estendidos, as pernas entreabertas e a cabeça voltada para cima, deixavam claro que a garota havia acordado na mesma posição em que dormira, após ingerir alguns de seus calmantes. Alguns a mais do que costumava tomar. Alguns e um pouco de álcool, na verdade.
Enquanto olhava fixamente para o teto, as lembranças da noite anterior voltavam à tona. Pequenas manchas de umidade pareciam tomar vida e forma, enquanto seus pensamentos se organizavam. Se ainda estivesse sob efeito da bebida e dos remédios, diria estar tendo alucinações, mas não. Era apenas fruto de uma vista cansada e de uma cabeça funcionando num ritmo veloz. Veloz demais para quem havia acabado de acordar.
Rachel fechou os olhos por um momento, tentando se livrar do leve enjoo que insistia em lhe perturbar. Respirou fundo, abriu novamente os olhos e deixou a cabeça pender para um dos lados. Olhou para o relógio ao lado de sua cama, sobre o criado mudo. Os números vermelhos marcavam 14:37. Voltou a olhar para o teto e, em seguida, pendeu a cabeça para o outro lado. Dessa vez, o corpo acompanhou. A jovem encolhera-se na cama, colocando ambas as mãos sob o travesseiro e dobrando as pernas, ficando em uma posição quase fetal. Rachel sentiu seu corpo inteiro formigar. Riu e fez caretas, ao mesmo tempo, enquanto esperava a sensação desagradável passar. Pensou em quanto tempo havia dormido e se, realmente, havia passado toda a noite na mesma posição. Não lembrava ao certo a que horas fora dormir, mas sabia que havia sido um pouco depois do fim de seu encontro.
Já com o corpo totalmente desperto, sentou-se, com as costas apoiadas na guarda da cama. O quarto escuro parecia ser o cenário ideal para que mais lembranças lhe viessem à mente. Rachel não havia esquecido do que acontecera, mas era como se determinadas partes de suas memórias tivessem uma importância maior, e eram justamente essas partes que insistiam em ressurgir e fazer com que a garota se lembrasse e tivesse consciência dos fatos e das consequências de tudo o que havia acontecido e, principalmente, do que ainda viria a acontecer.
Um arrepio percorreu o corpo da garota ao tocar o piso frio e liso. Levantou os pés e abraçou o próprio corpo, enquanto olhava ao redor, procurando suas pantufas. Logicamente, elas não estariam ali. Antes de dormir, Rachel não havia tirado nem mesmo suas roupas. Ainda vestia a mesma calça de moletom cinza, folgada, e uma blusinha branca de mangas curtas. Aos pulos, chegou ao outro lado do quarto e começou a bisbilhotar uma sapateira. Finalmente, encontrou as pantufas e as calçou. Pegou um pequeno casaco azul de lã que estava pendurado no cabide e o vestiu. Sem mais se deter, abriu a porta do quarto e saiu, esperando que as malditas lembranças não a acompanhassem, mas isso não aconteceu.
Após atravessar um pequeno corredor, Rachel chegou à sala. As paredes brancas, decoradas com alguns quadros, pareciam desbotadas e sem vida, bem como as fotos nas molduras. Aquela tarde nublada de sábado, com a sua luminosidade opaca, havia se encarregado de tornar mais lúgubre, ainda, o que já era triste. Por alguns instantes, Rachel permaneceu imóvel, olhando fixamente para a mesinha de centro, onde ainda estavam as taças sujas de vinho e as garrafas vazias. Depois, voltou seu olhar para o sofá. Uma cadeira e um pufe, ainda amassado, completavam o cenário. A garota fechou os olhos e se deixou levar pelas lembranças, mesmo não querendo.

* * *

Na noite passada, Rachel havia preparado uma pequena surpresa para Jonas, seu namorado. Talvez ele não se lembrasse, mas naquela sexta-feira, completariam um ano e cinco meses juntos desde que se conheceram. Ela costumava chamar essa data de “aniversário de primeiro encontro”, embora não fosse um aniversário propriamente dito, pois ela fazia questão de comemorar a data mensalmente. Rachel já havia se acostumado com o jeito desatento de Jonas, por isso não se incomodava mais quando ele deixava passar em branco algum momento especial. Ao invés de se zangar, Rachel aproveitava para fazer algo que o surpreendesse: Um jantar, uma noite especial ou, até mesmo, um jogo sensual. Coisas de namorados. Dessa vez seria algo mais simples, mas igualmente interessante. Um vinho, algumas massagens e uma noite inteira para ambos. Iriam se encontrar às 23:30, como sempre. Um pouco depois que as aulas na faculdade terminassem.
Eram quase nove horas da noite quando Jonas ligou. Parecia nervoso ao telefone, falando rapidamente e atropelando palavras. Dissera apenas que precisava conversar com ela e que tinha algo muito importante para dizer. A princípio, Rachel assustou-se, tanto pela hora da ligação, como pelo modo como Jonas havia falado: Conversar. A palavra pareceu mais séria do que de costume. Se ele tivesse dito apenas que precisava falar com ela, Rachel se sentiria mais calma. Depois, riu de si mesma por dar tanta importância a uma única palavra. Aos poucos, foi tentando se acalmar. Imaginou bons motivos para o aparente nervosismo do namorado. Há alguns dias atrás, Jonas havia falado sobre noivado e alguns planos para o futuro. O fim da faculdade, o novo emprego e, para surpresa de Rachel, filhos, e foi nisso que Rachel se apegou. Mesmo ainda nervosa, Rachel quis acreditar que, quase que por um milagre, Jonas havia se lembrado do dia especial e usaria a data para dar o próximo passo: O noivado.
Às 21:12, Rachel ouviu a campainha tocar. Levantou-se do pufe e foi atender. Espiou pelo olho mágico e viu Jonas, tentando espiar de volta. A garota segurou o riso e, depois de esperar que Jonas chamasse pela segunda vez, abriu a porta, sorrindo.
- Posso entrar? – Perguntou Jonas, esfregando as mãos trêmulas.
- Claro... – Respondeu Rachel, sorrindo.
Jonas ficou parado, olhando para a namorada.
- Não vai entrar? – Perguntou Rachel, sem entender a reação de Jonas.
Jonas entrou no apartamento, deu alguns passos e virou-se para Rachel, que o acompanhava com os olhos. O rapaz colocou as mãos nos bolsos da jaqueta e respirou fundo, buscando fôlego e coragem para prosseguir. Rachel fechou a porta atrás de si e deu alguns passos até o namorado, ainda sorrindo. Ela podia ver pequenas gotas de suor em sua testa. Sentia sua respiração ofegante. Tocou no peito do rapaz, sentindo seu coração bater freneticamente. Jonas recuou, como se o toque da jovem o afastasse. O pouco de esperança que Rachel ainda tinha em receber uma boa notícia acabara naquele momento.
- O que foi? – Perguntou a garota, desfazendo completamente o sorriso.
- Uma vez você me disse que, acima de tudo, deveríamos ser sinceros um com o outro... – Respondeu Jonas, rapidamente, procurando encerrar aquela conversa difícil.
Uma lágrima rolou pelo rosto de Rachel, até parar em seus lábios, duramente cerrados. Jonas parecia cada vez mais pálido e nervoso. A garota levou uma das mãos até a boca e, com a voz embargada, perguntou:
- Há quanto tempo você... ?
Jonas arregalou os olhos ao ouvir a pergunta de Rachel. Ele não precisou dizer mais nada para que ela entendesse a situação toda. De certa forma, Jonas sentiu-se aliviado por isso.
- Três meses, mais ou menos... – Respondeu ele, depois de um breve silêncio.
Rachel fechou os olhos e suspirou. Abriu-os, novamente e perguntou:
- Com quem?
- Rachel... Por favor... – Disse Jonas, visivelmente constrangido.
- Com quem!? – Vociferou, Rachel.
- Helena... – Respondeu Jonas, em um tom quase inaudível.
Rachel colocou as mãos na cintura, enquanto olhava para o chão e começava a rir. Andou pela sala, acompanhada pelo olhar de Jonas que, sem sair do lugar, apenas girava o corpo para poder observá-la. Deu mais alguns passos e atirou-se sobre o pufe, colocando a cabeça entre as mãos. Jonas sentou-se no sofá, recostando-se e apoiando a cabeça na parede, com os olhos fechados. Rachel espiou por sobre seus braços, procurando o relógio da sala. Eram 21:27. Olhou para a estante e viu um pequeno volume dentro de um envelope pardo. A garota levantou-se com um pulo e foi até a estante. Pegou o envelope, olhou novamente para o relógio e foi para perto da porta. Jonas, sem entender, apenas observava. A garota enxugou as lágrimas e colocou a mão sobre a maçaneta da porta. Às 21:29, a campainha tocou novamente. Ignorando o olho mágico, Rachel abriu a porta e fez sinal para que a visita entrasse.
Helena, sempre pontual, viera buscar alguns livros com a amiga. Assim que a amiga entrou, Rachel trancou a porta, guardou as chaves no bolso da calça e foi até a cozinha buscar as taças e as garrafas de vinho que havia reservado para aquela ocasião.

O resto da noite transcorreu de uma maneira que nenhum dos três poderia imaginar. Sem gritos. Sem escândalos. Sem brigas ou discussões. Apenas o silêncio, olhares e algumas perguntas. Se eles soubessem o quão maçante seria permanecer em um ambiente com aquele clima por tanto tempo, teriam escolhido o caminho mais direto e violento de resolver as coisas.
Helena, sentada em uma cadeira, apenas chorava e soluçava. Jonas, bastante tonto, apenas respondia o que lhe era perguntado e voltava a beber. Rachel, atirada sobre o pufe, perguntava sobre o relacionamento dos dois. De vez em quando, Rachel chacoalhava o molho de chaves em sua mão, lembrando a todos que a porta estava trancada e que não havia outro meio de sair do apartamento, a não ser, é claro, que algum deles optasse por pular da janela do 7º andar.
Por volta das 02:30 da manhã, Rachel decidiu terminar a reunião. Bebeu, com um único gole, o resto do vinho em sua taça e levantou-se. Deu alguns passos em direção ao seu quarto e, antes de continuar, jogou as chaves no sofá, ao lado de Jonas.
- O último a sair, por favor, feche a porta... – Disse Rachel, sem olhar para os demais.
Deu as costas a ambos e entrou em seu quarto. Ao fechar a porta, pôde ouvir que Helena e Jonas discutiam. Continuou em pé, atrás da porta, escutando os argumentos de cada um. Helena o culpava por ter sido tão precipitado. Jonas a reprimia por não ter dito que viria ao apartamento de Rachel. Por fim, a garota escutou o barulho de um tapa, seguido de um baque forte. Fez-se um silêncio total. Helena havia saído e deixado Jonas ali. Rachel pensou que ele poderia entrar em seu quarto e tentar algo, mas logo essa ideia se desfez. Ouviu, claramente, uma garrafa vazia sendo colocada sobre a mesa e, logo em seguida, a porta da sala sendo aberta e fechada outra vez. O silêncio tomou conta de tudo novamente. Rachel sabia que ainda teria de pensar muito sobre tudo o que acontecera, mas não ali, não agora. Já tinha tido o suficiente para uma noite só. Queria dormir logo e, talvez, acordar no outro dia.
Rachel voltou à sala, trancou a porta e pegou a taça que havia servido para Helena, a qual não havia bebido. Foi até o banheiro, abriu o armário da pia e encontrou um pequeno frasco de vidro. Eram calmantes. Rachel costumava tomar um ou dois quando não conseguia dormir. Não eram fortes, na dose correta. A garota retirou a tampa e despejou alguns em sua boca, engolindo-os com um pouco de vinho. Restaram poucos, os quais Rachel terminou de engolir com o que havia sobrado da bebida. Largou a taça sobre o armário e foi para o seu quarto, jogando-se sobre a cama. Aos poucos, sua consciência ia sumindo e, para seu alívio, levando consigo as lembranças daquela noite.

* * *

Rachel abriu os olhos lentamente, como se voltasse de um estado de transe e ficou observando a sala por alguns instantes. Atravessou-a e logo estava na cozinha. Acendeu uma das bocas do fogão e pôs um pouco de água para aquecer. Enquanto Rachel preparava seu café, pequenas gotas de chuva começavam a escorrer pela janela, em frente à pia. A garota acompanhou uma das gotas percorrer todo o vidro até sumir de vista. O silvo da chaleira fez a garota desviar sua atenção da chuva.
- Droga... Ferveu... – Disse Rachel, desligando rapidamente o fogão.
A garota derramou um pouco da água quente em sua xícara e completou com água da torneira. Fez uma cara de repulsa, imaginando que seu café não sairia tão bom quanto esperava, mas surpreendeu-se. A bebida parecia estar melhor do que nunca. Rachel adorava café e, sempre que podia, bebia. Ela havia passado mais tempo do que costumava sem tomar uma xícara, e talvez isso explicasse porque o achara tão bom naquele momento. A garota fechou os olhos e deixou que os prazeres daquela bebida operassem seus milagres. O calor da xícara tomou-lhe as mãos. O cheiro e o gosto forte inundaram seus sentidos. Rachel fechou os olhos e demorou um pouco a engolir o café, tentando tirar o máximo de sabor daquela pequena porção. Por fim, engoliu. O líquido pareceu descer de maneira aveludada por sua garganta, fazendo com que a garota experimentasse uma peculiar sensação de bem-estar e aconchego, ao mesmo tempo. Pressionou a língua contra o céu da boca, querendo tirar tudo o que podia de sabor daquele primeiro gole. Quando encostou os lábios na xícara novamente, a campainha tocou.
- Céus... – Disse Rachel, visivelmente chateada, soltando a xícara sobre o balcão.
Rapidamente, foi à sala e abriu a porta, sem sequer espiar pelo olho mágico. À sua frente, ensopado, com os cabelos colados ao rosto pálido e os lábios arroxeados, Jonas a fitava com um semblante triste e abatido. Rachel encheu o peito de ar, mas, antes que pudesse dizer algo, Jonas interpelou:
- Posso entrar? – Perguntou Jonas, com um tom de voz firme que em nada combinava com seu aspecto frágil naquele momento.
Rachel ficou em silêncio por alguns instantes, olhando fixamente para Jonas. Em seguida, balançou os ombros e estendeu um dos braços, indicando o interior da sala para o jovem. Em seus pensamentos, Rachel questionava-se sobre o fato de ter deixado o ex-namorado entrar. A garota estava duplamente surpresa. Primeiramente, pelo modo conciso de Jonas falar e agir e, em segundo lugar, pelo fato de ele ter voltado tão cedo, depois dos últimos acontecimentos.
Rachel não sabia, ao certo, o que dizer, o que pensar e nem como agir. Apesar de tudo, de todos os sentimentos e pensamentos confusos dentro de si, Rachel estava curiosa. Curiosa com a visita de Jonas. Curiosa com o que viria a seguir. E foi a curiosidade de Rachel que a fez permitir a entrada de Jonas.
Sem dizer nada, Jonas entrou. Rachel fechou a porta atrás de si e virou-se para Jonas, que a encarava, sem piscar. Rachel, novamente, puxou o ar e preparou as palavras, mas foi subitamente interrompida por Jonas, que avançou em sua direção, tomando-a em seus braços e calando-a com um beijo.
Rachel, primeiramente, tentou reagir. Deu tapas nas costas do rapaz, colocou suas mãos no peito de Jonas, tentando afastá-lo, mas acabou por desistir. Rachel sentia, ao mesmo tempo, raiva e nojo. Raiva de si mesma, por ter se entregado tão fácil a alguém que a havia traído. E nojo de Jonas, por saber que, durante tanto tempo, beijara outra boca que não a sua, sem sentir remorso algum por isso. Mas Rachel não se sentia apta a questionar, discutir ou decidir. Escondeu seus sentimentos negativos e deixou que a própria situação definisse o seu final. Momentos depois, estavam no sofá, ambos nus, amando-se torridamente, como se o passado não existisse ou, pelo menos, não importasse.

O fim da tarde surpreendeu a ambos. O tempo parecia ter passado mais rápido desde a chegada de Jonas. Com um misto de normalidade e constrangimento, despediram-se, trocando beijos e abraços, mas sem palavras. O silêncio era uma saída, embora não muito clara, para aquietar e organizar os pensamentos naquele momento. O rapaz se fora. Rachel jogou-se novamente no sofá, com cansaço de sobra e pouca vontade para tentar entender e digerir tudo o que havia acontecido entre os dois naquela tarde. Logo, adormeceu.

Batidas rápidas e vigorosas fizeram Rachel acordar. Ficou em silêncio por alguns instantes, como se quisesse ter certeza de que os sons vinham de sua porta. Logo, ouviu a campainha tocar, seguida de mais batidas. Rapidamente, levantou-se do sofá e cruzou a sala com passos silenciosos, abafados pela maciez de suas meias. Antes de abrir, espiou pelo olho mágico e, com surpresa, viu Helena do outro lado. Por um momento, hesitou. Pensou em dar as costas e fingir que não havia ninguém no apartamento. Afastou-se da porta, recuando alguns passos. Mais batidas na porta. Rachel assustou-se com o barulho e, como se ele fizesse seus pensamentos definirem-se, avançou em direção à porta e a abriu num movimento rápido e firme. Não demonstrou surpresa ao ver a garota à sua frente, pois já sabia de quem se tratava. Helena, com os olhos avermelhados, as sobrancelhas inclinadas e os lábios contraídos, desabou sobre a amiga, chorando, enquanto a abraçava e tentava pedir desculpas, em meio a soluços e engasgos. Rachel não retribuiu o abraço. Na verdade, não conseguiu apresentar reação alguma diante daquela cena. Os sentimentos negativos por Helena ainda perduravam, mas, frente àquela situação, Rachel sentia-se mais confusa do que rancorosa. Aos poucos, deixou aflorar o pouco que ainda restava de estima pela amiga e, lentamente, a abraçou. Permaneceram assim por alguns instantes, até que Rachel segurou Helena pelos ombros e a afastou, procurando fixar seus olhos nos da garota.
O que aconteceu? – Perguntou Rachel, tentando demonstrar frieza em suas palavras, mas visivelmente preocupada com a amiga.
- Jonas... – Disse Helena, recomeçando a chorar.
Um arrepio percorreu o corpo de Rachel ao ouvir o nome do ex-namorado, fazendo-a tremer dos pés à cabeça. Colocou as mãos na cintura e baixou a cabeça, fechando os olhos. Lembrou-se de tudo o que havia acontecido naquela tarde. Os beijos, as palavras, os sentimentos. A esperança, mesmo que ínfima, de um recomeço. Aos poucos foi se acalmando e organizando os pensamentos. De repente, tudo pareceu muito claro e óbvio para Rachel: Antes de vir procurá-la, Jonas havia terminado com Helena que, por sua vez, viera buscar consolo. Porém, nem tudo fazia sentido. Rachel não compreendia como Helena conseguia ser tão inconsequente ao ponto de pedir ajuda a quem havia traído. No entanto, não se ateve a detalhes. Agora, sentia-se repleta de um sentimento que experimentara poucas vezes. Um misto de triunfo e superioridade.
- É... Eu imaginei... – Disse Rachel, com um sorrisinho cínico. – Mas convenhamos. Você já devia imaginar que...
- Ele morreu... – Interpelou Helena, num tom quase inaudível.
Rachel levou as mãos à boca. Seus olhos encheram-se de lágrimas.
- O quê!? – O grito de Rachel saiu abafado por suas mãos. – Não pode ser! Não pode ser! Ele... Eu...
Helena parecia um pouco mais controlada. Respirou fundo e secou os olhos com umas das mãos, depois, abraçou a amiga. Toda a tristeza que havia em Helena parecia estar em Rachel, agora. Ela compreendia a dor da amiga, mas não em sua totalidade. Helena sequer cogitava a hipótese de Rachel e Jonas terem se encontrado poucas horas antes de sua chegada.
- Eu tentei te avisar, mas seus telefones pareciam estar desligados. Não pude vir mais cedo. Fiquei o tempo todo com os pais de Jonas, ajudando na liberação do corpo, nos preparativos para o velório, no transporte dos familiares, enfim. – Sussurrou Helena, passando uma das mãos pelos cabelos de Rachel.
- Como aconteceu? – Perguntou Rachel, depois de um tempo em silêncio.
- Acho que perdeu o controle da direção. Não sei ao certo, só sei que foi de carro... – A voz de Helena voltava a ficar trêmula.
Rachel lembrou-se da chuva. Fechou os olhos e, contra sua própria vontade, imaginou a cena. O carro derrapando, indo de encontro a um muro ou um poste. O rosto ensanguentado sobre o volante.
- Ele nunca havia feito isso... Nunca! – A voz de Helena tinha um tom de indignação.
- Feito o quê? – Perguntou Rachel, sem entender a observação da amiga.
- Beber e dirigir, ora... Ah, desculpe... Eu não disse, não é? – Helena parecia constrangida.
- Disse o quê!? – Rachel segurou a amiga pelos ombros, afastando-a.
Helena arregalou os olhos e fitou a amiga, com surpresa. Rachel não parecia a mesma que chorava, momentos antes.
- Bom... A polícia disse que ele havia bebido bastante... E que por isso... - Disse Helena, até ser interrompida pela amiga.
- Mas como assim!? – Gritou Rachel, levando as mãos à cabeça. Nada daquilo fazia sentido para ela. Onde e por que Jonas teria bebido, depois do encontro à tarde?
- Rachel! – Gritou Helena, segurando firmemente a cabeça da amiga. – Ele estava fora de si, bebeu demais, correu demais e... Enfim... Aconteceu.
Rachel olhava para Helena, sem dizer nada, como se esperasse algo mais da amiga. Por mais que tentasse tirar conclusões, não conseguia. Imaginou inúmeras hipóteses, mas nenhuma lhe pareceu coerente. Helena, vendo o quão confusa Rachel estava, decidiu resumir a história, mas, assim que abriu a boca para falar, Rachel a interrompeu.
- E quando aconteceu? – Perguntou Rachel, procurando algum nexo em sua própria pergunta.
Helena, primeiramente, a olhou com certa estranheza. Após um breve silêncio, desviou o olhar, respirou fundo e voltou a olhar para a amiga.
- Ontem à noite... Três e pouco da madrugada, eu acho. – Disse Helena, sem compreender a expressão de pavor no rosto de Rachel.