quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Meia Volta


Depois de muito tempo, ela voltou.

Reapareceu do nada, como um desconhecido que chega em uma casa qualquer, por um motivo aleatório.

Os olhos serenos. O rosto tranquilo. A paz e a segurança estampadas em seu semblante. Os lábios, que até então estavam cerrados, não esboçavam sequer um sorriso. Também não havia, em contrapartida, uma fina e única linha de mágoa ou rancor. Não havia nada além da inexpressividade tranquila.

Ele, por sua vez, devorava-se por dentro. Tudo o que havia sido guardado, as palavras não ditas, o silêncio forçado, agora pareciam querer explodir através de sua boca. O calor cheio de fúria que subia por sua garganta fazia-o cerrar os dentes, quase ao ponto de trincá-los. Ele, literalmente, bufava.

Foi ela, no entanto, quem desferiu a primeira sentença.

- Eu te amo.

E disse assim, sem mais nem menos, como se tudo tivesse acontecido ontem ou há apenas algumas horas. Aliás, disse com tamanha simplicidade, que nada parecia ter acontecido.

Ele desarmou-se. Seu corpo tremeu por inteiro, e a raiva, tão certa e encravada em seu peito, titubeou, dando lugar à fraqueza. Por um instante, ele se viu retribuindo o que ela dissera, mas permaneceu em silêncio.

Ela, por sua vez, nada mais disse. E a boca, antes fechada, agora exibia um sorriso suave e familiar. O mesmo sorriso de tempos atrás.

Ele, no entanto, percebeu algo mais. Em um dos cantos daqueles lábios escondia-se outro sentimento. Havia sinceridade, é verdade, mas havia mais do que isso. Uma curva maldosa, irônica, quase cínica. Havia, sim, prazer naquele sorriso. Um prazer vingativo.

Sim. Ela estava vingada.

Depois de tanto tempo, ela finalmente estava no lugar que ele, mesmo sem maldade, já ocupara tantas vezes. Agora ela estava, como os outros costumam dizer, por cima, por isso sorria daquele jeito.

Ele estava em uma de suas mãos, e ela não fazia questão alguma de esconder o prazer que isso lhe dava.



O sentimento, por mais nobre que seja, sempre cede a algum apelo mais humano.



A vingança suave, cheia de carinho. O abraço pronto para acolher, impregnado de um regozijo maldoso.

"Sim... Agora é a minha vez..."

E ela estendeu os braços.

E ela esperou para dar o que ele por tanto tempo quisera e, tinha certeza, ainda queria.

E ela estava ali, carinhosa, plena e vingada.


Ele deu dois passos à frente, fez meia volta e foi embora, deixando para trás, além dela, tudo o que havia carregado sozinho durante tanto tempo.

Enfim, ele percebeu: Ela não era única. Ela não era especial.

Ela era apenas mais uma, igual a todas as outras pessoas.



O sentimento, por mais nobre que seja, sempre cede a algum apelo mais humano.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Parafusos

     - Por que você está fazendo isso comigo?

     Ela não respondeu. Permaneceu de costas para ele, segurando as lágrimas. O rosto duro, inflexível. Os lábios cerrados, numa expressão de quase fúria.

     Ele, por sua vez, não fazia questão de segurá-las. Embora sua fala fosse tranquila e ele não estivesse aos prantos, seus olhos transbordavam.

     - Diga, por favor, por quê?

     Ela se virou de súbito e o golpeou violentamente com uma grande e pesada chave de boca. Ele cambaleou, levou uma das mãos ao rosto e recuou. Tentou, em vão, agarrar-se às paredes, riscando faíscas com as pontas de seus dedos, mas caiu desajeitadamente sobre uma pilha de latas de óleo vazias e engrenagens velhas. - Pare, por favor... - Um de seus olhos havia sido quebrado pelo impacto. A luz azul, que antes preenchia uma de suas órbitas, extinguia-se lentamente. - Pare... Por quê?

     Ela não ouvia. Ao menos, parecia não ouvir, pois avançou novamente sobre ele com uma fúria descontrolada. Primeiro, acertou-lhe os joelhos. Ele, já caído, apenas pôde ouvir o estalo de suas articulações de metal, seguido de um chiado agudo e quente, em forma de vapor.

     - Você não precisa fazer isso... - A calma em sua voz dera lugar apenas à tristeza.

     - Sim, eu preciso! - Disse ela, entredentes, enquanto se preparava para um novo golpe, mirando os ombros daquele que estava jogado ao chão. - Eu preciso... Fazer isso... - Suas palavras, cheias de uma fúria incompreensível, saíam entrecortadas pelo choro e pelos soluços. - Eu preciso! Eu preciso, sim! - E enquanto vociferava, seguia batendo. Suas mãos, doloridas pelo impacto da chave no corpo metálico do outro, tremiam, mas agarravam-se com uma força descomunal à ferramenta, e quanto mais seus olhos se enchiam de lágrimas e raiva, mais fortes eram os golpes.

     Ele já não dizia mais nada. O olho que ainda lhe restava focava tristemente o rosto daquela criatura tão pequena e severa que, minutos antes, tão fraca e ingênua, sorria em sua presença, abraçando-o e dizendo-se feliz por ter conseguido construir a coisa mais incrível de toda a sua vida: Ele.

     - Você não me quer mais, é isso? - Mal ele terminou de falar, e a chave acertou-lhe a boca, amassando metade do rosto. Não houve resposta. Apenas golpes e mais golpes. Ela estava decidida a terminar com ele e com aquilo tudo.

     - Você... Não precisa... - A voz saía trêmula e com dificuldade, pois seu rosto estava danificado demais.

     Enfim, ela parou. Estava cabisbaixa e ofegante. O suor brotava exageradamente de sua testa. A ferramenta, que segurava tremulamente com uma das mãos, pendia, quase encostada no chão. Ele não sabia se ela estava apenas cansada ou se seus apelos haviam surtido algum efeito. Naquele estranho intervalo, ele tentou olhar para si mesmo. Suas pernas, destruídas pelos golpes, eram apenas dois pedaços retorcidos de metal e fios. Um de seus braços havia sido arrancado e estava a alguns centímetros de seu corpo. O outro que ainda restava, mal tinha forças para ser erguido.

     - Veja... - Disse ele, tentando levantar a mão na direção dela. - Veja... - Entre seus dedos tortos e quebrados, um havia permanecido quase intacto, e nele havia um sinal gravado: Um coração dentro de uma engrenagem. - Você se lembra? - Ele tentou sorrir com o que ainda lhe restava de um sorriso.

     Ela ajoelhou-se diante dele e o abraçou. A ferramenta que estava em sua mão tilintou ao cair no chão, fazendo ecoar um som estridente, mas breve. - Sim... Eu lembro...

     Eu entendo, pequena... Você já não me quer mais... - Sua voz, embora carregada de tristeza, parecia conter toda a compreensão existente no mundo. - Você não precisa fazer isso... - Ele tentou sorrir novamente. - Deixe-me aqui, por favor. Pode ser assim, mesmo... Não precisa sequer me consertar... Eu sei cuidar de mim... - Ele riu. - Você também me ensinou a fazer isso, lembra?

     Ela riu e chorou com a lembrança.

     O começo fora tão difícil. Tantos testes que deram errado, tantas tentativas mal sucedidas. Mas agora ele estava ali, praticamente perfeito, carregando apenas os defeitos que até os mais certos possuem, mas ela já não o queria mais. E ele, com aquela humildade gigantesca, quase irritante, dificultava ainda mais as coisas. Não, ela não o queria mais. Talvez até o quisesse, mas não poderia mais querer. Foram tantos ferimentos e noites mal dormidas. Tanto tempo perdido, tentando transformar aquele robô estúpido em algo melhor. Não... Ela não podia seguir. A sua vida, ao contrário da dele, não poderia ser eterna. Ela, de carne e osso, sabia que o tempo para os dois corria de maneiras diferentes. Ele, se assim quisesse, poderia viver eternamente, enquanto houvesse uma bateria em seu peito.

     Ela, suavemente, desfez o abraço. Inclinou-se um pouco para trás e, sentada nas pernas do robô, o encarou, ao mesmo tempo, com ternura e tristeza.

     - Você não precisa fazer isso... - A voz dele era quase um sussurro. - Você não precisa me tirar da sua vida para poder vivê-la...

     - Eu sei... - Ela respondeu. - Eu sei... - Ela inclinou-se para frente, passou a mão em seu rosto desfigurado, deu um longo beijo na testa dele e cochichou em seu ouvido. - Eu sei, me desculpe... - Levantou-se, foi até o local onde estava a chave e, com a ferramenta em mão, voltou até ele. Cuidadosamente, deitou-o e ajoelhou-se ao seu lado.

     - Por favor... Não...

   - Desculpe-me... - Suas lágrimas caíam silenciosamente sobre o peito de metal amassado, enquanto, um a um, ela retirava os parafusos que protegiam o interior daquele ser. Enfim, ela o abriu. Com dois puxões, arrancou um punhado de fios, e a luz que ainda restava no olho preservado do robô, por fim, apagou-se.

     Ela se levantou, enxugou as lágrimas e guardou os parafusos no bolso do jaleco. Eles seriam úteis em um futuro próximo.

     Já há algum tempo ela vinha trabalhando em um novo projeto.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Folha Seca

   Finalmente, depois de tanto tempo, conseguia sentir aquela sensação maravilhosa, outra vez.

   Apesar de todos os anos vividos à beira do fim, ele não havia esquecido como era sentir-se daquela maneira, tão livre e tão leve, e tal era a sua leveza, que sentia-se capaz de sair voando por sobre a cidade, como tantas vezes fizera em pensamento. Aliás, não apenas pensava ser capaz, como de fato, era, e assim o fez.

   Ele fechou os olhos, abriu os braços e deixou que sua mente o levasse a todos os lugares possíveis. Permitiu-se sobrevoar todas as ruas, becos e esquinas. Todas as praças, quintais e avenidas. Lugares que conhecia tão bem, por ter, em incontáveis noites, percorrido a cidade inteira em busca de alívio para a sua mente cansada, confusa e perdida.

   Mas agora ele estava ali, único e sublime. Outra vez, era senhor de si e de seus pensamentos, dono de seu próprio destino e de suas vontades. E enquanto voava, ia deixando para trás todas as coisas ruins e pesadas. As mágoas e os pensamentos tristes iam ficando pelo caminho, conforme ele avançava em sua viagem rumo ao desconhecido. O desconhecido que aguarda por todos aqueles que decidem deixar seu passado no devido lugar.

     A sensação, realmente, era indescrtível.

   Até o divino, abolido de sua vida, voltou a ter lugar em seus pensamentos. Em meio à euforia, um agradecimento quase inconsciente... Deus! Como era bom sentir-se assim novamente!

   O vento no rosto, soprando rápido. O frio gostoso da noite a tocar-lhe a pele. O cheiro e o gosto do silêncio apaziguador.

   Por trás das pálpebras cerradas, seus olhos mal conseguiam distinguir os borrões coloridos que passavam velozmente. Lembrou-se de seu pai e das tardes ensolaradas no parque, aos finais de semana, onde sempre brincavam de girar, e de como o sol inundava de cores seus olhos fechados, tal como as luzes da cidade faziam agora. Como uma criança, ele riu. Sentiu seus braços serem pegos por mãos fortes e paternas, e seu corpo, desobedecendo a gravidade, passou a não pesar nada, enquanto era girado infinitamente naquela ciranda tão familiar.

   E como uma criança, também, ele chorou. Chorou ao lembrar de ter visto todos os bons momentos tornarem-se apenas lembranças distantes. Chorou quando sentiu o aroma de grama verde, aos poucos, ser transformado em cheiro de álcool e fumaça de cigarro. Seus olhos, agora molhados, transformaram-se em um caleidoscópio de cores e sentimentos desordenados, refletindo e refratando memórias de um tempo que jamais voltaria. Na verdade, tempo algum jamais volta, mas alguns vão além disso, restando apenas a opção de soterrá-los.

   No entanto, tal como tudo mais que lhe era penoso, as tristezas foram se esvaindo conforme o voo avançava. O vento, ainda veloz, fazia suas roupas tremularem, como os lençóis brancos e limpos que a mãe costumava pendurar no varal e que dançavam conforme o ritmo da brisa. Suas lágrimas, frias e quase secas, fizeram-no lembrar das vezes em que, após ter a certeza de estar sozinho, corria de encontro aos lençóis úmidos, recém lavados, apenas para sentir o frescor em seu rosto.

   Ele nunca esqueceu do que sua mãe dissera sobre os lençóis no varal. Para ela, eles passavam uma sensação tão, mas tão grande de liberdade, que ela gostaria de ser um deles, apenas para sentir o que eles sentiam. Não demorou muito até ele formular um novo pensamento e concluir que, de fato, os lençóis não são livres, já que estão sempre presos ou dobrados sobre a corda. Uma liberdade relativa e limitada. Mas ele achou melhor não explicar seu ponto de vista. Se alguém sonha com essa visão de liberdade, talvez seja porque a vida que leva está aquém daquilo que toma por referência. O simples, e até mesmo o falso, podem ser muito ou tudo para alguém, e ninguém tem o direito de destruir as ilusões alheias, por mais tolas que nos pareçam.

   Novamente, um pouco de tristeza. Lembrou-se de ter conhecido alguém assim, que mesmo sem o direito, podou asas e destruiu fantasias. Alguém muito próximo. Para ser mais exato, mais próximo do que gostaria.

   Mas a viagem, felizmente, não havia terminado, e ele ainda dispunha de muito tempo para livrar-se das dores e das culpas que ainda possuía.

   Deixou para trás a vergonha do fracasso na vida e a impotência diante do amor sincero de alguém.

   Desvencilhou-se da couraça e do escudo.

   E as armas, manchadas com o próprio sangue, já que sempre acabou machucando mais a si do que aos outros, também foram descartadas.

   Agora possuía apenas o próprio corpo, desnudo de culpa, e a alma, enfim, possuidora de redenção.

   Leve como uma folha seca, planou serenamente antes de aterrisar, enquanto revivia imagens da antiga escola, de seus oito anos e das amoreiras douradas pelo outono, que sempre teciam carpetes para as brincadeiras no recreio.

   Seu corpo tocou o solo. Sua mente, carente do corpo já destruído, apagou-se. A consciência, antes tão conturbada, finalmente deu lugar ao torpor reconfortante. E em três segundos de queda livre, do topo estrelado de um prédio ao cinza áspero da calçada, sua vida fez-se filme, tal como afirmam ser todos aqueles que estiveram perto de voar pela última vez.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Sangue


A mão que protege
É a mesma que machuca.

O sangue que verte da dor
É o mesmo no qual a flor se afoga.

Os espinhos,
Que aos predadores serviriam de aviso,
Acabam, apenas, por rasgar a carne amada.

E as ofensas,
Esperadas do desconhecido,
Nascem, tristemente, no terreno cultivado.

Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que não te cativa?

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

...


Aquele gosto ruim que fica na boca,
quando não se consegue dizer
"eu te amo" ou "eu também".

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Apático

Certezas passageiras.

Falsas calmarias.

Enquanto tantos choram sem conhecer a verdadeira dor,
Há os que, de tanta dor, já não conseguem mais chorar.

São tantas lágrimas poéticas,
Desprovidas de sentido,
Que a verdadeira mágoa se esconde
E se faz sofrer calada.

E nestes tempos, onde a tristeza é uma coisa bonita,
Há, e muito, quem abuse da boa sorte,
Inventando mazelas, dramas e mortes
De amigos e amores que nunca existiram.

Mas pelos olhos, agora secos, dos insensíveis,
A vida passa apática.

E em meio ao tumulto,
Além dos que gritam e dos que apenas observam,
Estão aqueles que não fazem mais nada.

Aqueles que taparam seus ouvidos para a cacofonia de absurdos,
Fecharam os olhos ante a estupidez e a banalidade
E engoliram ofensas que poderiam ter sido facilmente esbravejadas.

O silêncio guarda, dentro de si,
A revolta incompreendida.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Impaciente

Conto as horas,
Impaciente.

Com a ponta do dedo,
Cutuco o vidro do relógio,
Tentando acordar os ponteiros,
A fim de apressar o tempo.

Ando de um lado para o outro,
Percorrendo, inúmeras vezes,
O mesmo espaço.


Com a mesma velocidade,
Dias e anos se arrastam,
Sem demonstrar intenção alguma de serem,
Ao menos,
Um pouco mais rápidos.


A mesma sala.
A mesma mobília.
A mesma casa,
Todos os dias.

Se chove ou faz sol, já não sei,
Pois há tempos não olho pela janela.
Na verdade, há tempos perdi o interesse
Pelas coisas que acontecem lá fora.

Como criança impaciente, sento, emburrado.
Bato o pé. Respiro fundo.
Quando isso vai terminar?
Ainda falta muito?

Vejo-me menino, outra vez.
Pelos cantos, sorrateiro.
Incomodado com as visitas que demoram.

Podemos ir embora agora?

Mas ninguém vem me buscar.
Já não há quem me pegue pela mão
E me tire desse sonho ruim.

Estou em uma casa de estranhos,
Cercado por desconhecidos.

Estou sozinho,
Perdido,
E sem vontade alguma de encontrar um caminho.

Estou cansado.
Quero dormir.

Diga-me, por favor...
Quanto tempo falta para a vida acabar?

terça-feira, 3 de julho de 2012

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Abraço


Já que falar está tão difícil,
Vamos ficar em silêncio.


Vamos selar a noite com um abraço.
Um beijo no rosto.
Um pretexto disfarçado de acaso
Para um próximo encontro.

Vamos fazer de conta
Que não há nada mal resolvido.
Que tudo está claro, seguro
E definido.

Vamos fazer de conta
Que a amizade, finalmente,
Encontrou seu lugar entre nós.

Amanhã,
Vamos brincar de bons modos,
De gentilezas exageradas,
De zelo descomunal.

Voltaremos a cultivar formalidades.
Limites.
Mentiras bem intencionadas.

Mas hoje,
Enquanto a noite não termina,
Só quero que me abrace,
Mesmo sem vontade,
E divida esse momento comigo.

Me abrace,
E me mate em pensamento,
Se assim quiser.

Feche os olhos.
Não diga nada.
Apenas me deixe ficar aqui,
Onde sempre quis estar.

Se seus braços não puderem retribuir,
Peço que me deixe aproveitar
Esse momento tão meu.

E se não puder sentir,
Deixe-me tentar.
Por nós dois.

Que você veja como loucura
Ou desespero.
Desde que eu não precise sair daqui.


Amanhã, novamente,
Estará livre para me esquecer.
Mas agora, e mesmo que apenas agora,
Deixe-me, por favor,
Ficar em você.

terça-feira, 5 de junho de 2012

Agonia

Eu, que sempre esperei ansiosamente pela noite,
Agora me vejo com medo do anoitecer,
Pois é nessa hora que tudo toma forma
E se revela.

Desejos.
Lembranças.
Esperanças.
Ilusões.

Sob a luz fraca da razão,
Todos os sentimentos se reúnem,
E, numa brincadeira doentia,
Infligem tudo o que podem,
No menor tempo possível.

Já não tenho vontade de voltar para casa, pois,
Quando chegar,
Encontrarei tudo do mesmo jeito.

Minha vida,
Todos os dias,
Termina ao entardecer.

Depois disso, apenas agonia.
Um sentimento de quase morte.
Inércia.
Apatia.
Que se estende até o amanhecer.

E no dia seguinte, quando desperto,
Guardo, bem fundo, tudo aquilo que me assombra.

Passo pelo dia.

Desconverso.

Dissimulo.

Mas conforme as horas avançam,
Sinto que se aproxima.

Em pouco tempo, outra vez,
Estarei imerso no desespero.

Uma jornada árdua,
Inevitável.

Cruzo a madrugada aos tropeços.

Finalmente, depois de tanto fugir,
Caio cansado
E adormeço.

Sonhos e fragmentos de vida se misturam.
A realidade, por um breve instante, me concede uma trégua.

Mais uma noite vencida.
Mais uma noite mentida.
Mais uma de tantas outras.

Mais uma de muitas, ainda.

Nunca


Acabou,
Mas nunca acaba.

Esses restos que se escondem sob a nossa pele,
Dentro de livros,
E em fotos antigas,
Só nos dão a certeza
De que nunca termina.

A ilusão do possível
Nos faz criar
E procurar
Esperanças nas entrelinhas.

Mas agora acabou
E, ainda assim,
Nunca acaba.

O que me mantém vivo,
Percebo,
É a remota
E solitária
Possibilidade do novamente.
Do mais uma vez.
Da última vez.

E enquanto existir,
Mesmo que disfarçado de segurança,
Um pedaço de sentimento,
Não vai acabar.

Pois o fim depende do consenso,
E enquanto tudo for tão diferente,
Oposto e intenso,
Nada será permanente.
E apesar das palavras,
Tão certas e exatas,
A medida do que se sente
Extrapola qualquer limite estabelecido.

Não há ânimo para jogos,
Disfarces
Ou calmarias.

Não há nada que nos convença,
Por mais real que pareça,
De que tudo está claro, calmo e definido.

Mas tentamos, por fim,
Acreditar no que se impõe.

Uma voz triste e arrastada,
Cansada e gasta pelo tempo,
Nos diz, chorosa, que tudo acabou.

Enquanto,
Como um sussurro,
Algo sopra em nosso ouvido,
E assim como o beijo de quem se foi,
Também se despede,
Dizendo que, apesar do fim,
Nunca acaba.

...



"... que a fez tão importante."

Tormenta


Debruçado na janela,
Contemplo esse horizonte cinza,
Nebuloso.

Nuvens com cor de chumbo,
Carregadas de incertezas.

De longe,
Sopra um vento de chuva,
Trazendo consigo o cheiro de outros tempos.

Fechos os olhos e,
Sem sair do lugar,
Me permito voar em pensamentos,
Lembrando de momentos
E de um lugar especial.

Um lugar distante,
Escondido,
Onde tudo era mais fácil, simples e bonito.

Lembro de casas,
Pessoas
E objetos.

Lembro de presentes,
Promessas,
Afetos e desafetos.

Lembro de bons e maus momentos.

Lembro de fins,
Começos
E recomeços.

Recomeços que, aliás,
Pareciam ser inesgotáveis.
Quase eternos.


A primeira gota, então, molha meu rosto
E eu desperto de meu sonho.

A chuva não veio.
É apenas uma lágrima.

Mais uma vez,
Respiro fundo e encaro,
Com forçada serenidade,
A verdade que à minha frente se desdobra.


Eu estou à espera de uma tormenta que nunca chega.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

...

          - Olha... Eu entendo... Sei que é triste, dolorido... Eu já passei por isso... Mas não dá pra ser assim! Não dá! Levante essa cabeça, vá dar uma volta, saia um pouco... Você ainda é tão novo... Tem tanta gente pra conhecer... Tanta coisa pra viver... Tanto motivo pra ser feliz...

          Ele apenas sorriu, tristonho. - Não é questão de ser... É de fazer feliz...

Cidade

Queria ter a cidade inteira,
Totalmente vazia,
Só para mim.

Sentar em cada um de seus bancos,
Calçadas
E muretas.

Queria ter a cidade inteira,
Silenciosa,
Profunda.
Daquele jeito que poucos conhecem.

Ficar sob a luz amarelada,
De um daqueles postes antigos,
Adornados,
Na nossa praça.

Queria ter a cidade inteira dormindo,
Enquanto cruzamos a noite,
Como dois gatos,
Duas sombras ou,
Simplesmente,
Dois namorados.

E quando a cidade fosse minha, finalmente,
Queria poder, no outro canto de uma rua qualquer,
Avistar você.
E com passos calmos,
Sem medo do amanhecer,
Caminhar em sua direção.

Queria que a cidade, mais uma vez,
Fosse cúmplice,
E testemunha
De nossas promessas e desejos.

Queria que a cidade,
Como fora um dia,
Fosse nossa, mais uma vez.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Covarde


Boa tarde! Com licença! - O rapaz, apressado, colocou a maleta no chão e, fazendo os malabarismos que conseguia, sentou-se no banco da praça, com um cachorro quente em uma mão e uma lata de refrigerante na outra. Eram duas e quinze da tarde, e ele estava almoçando.

Ao seu lado, acompanhando sua agitação, com olhos serenos e sorriso agradável, havia um senhor. Setenta, setenta e cinco anos, talvez. Os cabelos, totalmente grisalhos, eram finos e leves como os de uma criança. Seu rosto era pequeno, de traços suaves, sem barba ou bigode. Sua aparência, a propósito, de modo geral, era impecável. Vestia um terno de linho branco, com uma camisa preta e sapatos também pretos, muito bem lustrados.

- Boa tarde... - Respondeu o senhor, calmamente, enquanto observava o rapaz ajeitar-se no banco, equilibrando o almoço nas mãos. - Você é advogado?

O jovem parou de mastigar e mostrou um olhar confuso e intrigado ao senhor. - Sou... - Ele riu. - Como o senhor sabe?

- Ah, eu não sei... Apenas deduzi... Bem vestido, apressado, boa aparência... - O senhor sorriu. Apesar da idade avançada, seus dentes e seu sorriso eram perfeitos.

- Pois é... A pressa... Acho que essa é nossa principal característica! - O jovem voltou a comer. - Mas isso é bom! O stress positivo, como nós dizemos! Acho que é assim que tem que ser!

- É... Acho que é assim, mesmo... - O olhar vago do senhor deixava claro que ele não concordava, apesar de ter dito o contrário, mas o jovem não percebeu. Seus olhos pulavam do relógio em seu pulso para o cachorro-quente, e do cachorro-quente, voltavam ao relógio. Seu tempo era curto, mas por uma questão de educação, arriscou perguntar.

- E o senhor, o que faz? - Talvez devesse ter perguntado o que ele fez, afinal, a julgar pela idade, era aposentado, mas não soaria bem. Sentiu-se um tanto estúpido com a própria pergunta, mas não prendeu-se a essa preocupação por muito tempo. Aquela pergunta era apenas para manter a formalidade, mesmo. Não havia interesse algum. Mera educação com os mais velhos, como mandam as regras.

- Eu? Ah, eu sou um covarde.

O jovem engasgou-se com um pedaço de pão. Tossiu e arrematou com um gole de refrigerante. - Desculpe... Como?

- Um covarde. Alguém sem coragem...

- Sim. Eu sei o que é um covarde, mas... - Que raios de conversa era aquela?

- Tem dez minutos do seu tempo para as histórias de um velho?

O rapaz voltou a olhar o relógio. Ele não dispunha dos dez minutos. - Claro...

- Bem... Acho que minha história é como uma daquelas de filme, sabe? Ou de novela, talvez... - Ele riu. - Tive alguém, não amei esse alguém, eu a perdi, ela casou, eu fiquei.

Até então, o jovem não havia reparado em um detalhe muito curioso. No dedo anelar da mão esquerda do senhor, havia um anel feminino. Fino, delicado, com uma bela, mas discreta pérola como adorno. O senhor percebeu o olhar confuso do rapaz. - Bonito, não?

- É... Muito bonito... Embora seja bem...

- Feminino?

- Delicado... - Sim, ele ia dizer que o anel era bem feminino, mesmo.

- Ah, sim... Ele é feminino, na verdade... É um anel de compromisso... - Os olhos serenos do idoso focaram saudosamente a pérola. - Ela tinha vinte e dois anos quando comprei esse anel... Vinte e dois anos! - Ele riu da própria lembrança. - Eu esperei seis anos para entregar... E veja só... - Ele balançou a cabeça de um lado para o outro, com um resto de sorriso nos lábios. - Guardei o anel por uma semana inteira, esperando que o sábado chegasse logo para que eu pudesse entregar... - Silêncio.

- E... Não entregou? - Ele estava, sim, um pouco curioso com a história, mas ainda tinha mais pressa que interesse. Tentou, educadamente, apressar o relato.

- Ela foi embora um dia antes... Sexta-feira...

- Embora?

- Sim... Foi embora... Terminou o que nós nunca tínhamos começado... Ou melhor, ela terminou o que eu nunca comecei... - Ele deu uma risadinha. - Acho que esperar seis anos por uma resposta destrói os sentimentos de qualquer um, não?

O jovem não respondeu. Já havia terminado o lanche, e agora parecia estar prestando atenção, mesmo, na história do senhor. O silêncio do rapaz foi a deixa para que o outro prosseguisse.

- Tive dúvidas, voltei atrás, nunca disse que a amava... Ou melhor, até disse, mas poucas vezes... E eu amava... E como amava... Na verdade, até hoje eu me pergunto o porquê de não ter dito mais vezes... Ou todas as vezes, pra ser mais exato...

- Mas então o senhor não tinha certeza se a amava? Não sabia se o que sentia era amor?

- E alguém tem?

O rapaz ficou em silêncio.

- Sabe? O amor não é feito de certezas... Quem te ensinou o que é o amor? Onde você aprendeu? Onde estão escritos os sintomas e as características dele? - O senhor sorriu, mas seus olhos estavam tristes. - Não saber se você ama alguém não é um crime, não é um pecado... Como é que você pode ter certeza de algo que você não conhece, que não sabe como é, que não sabe do que é feito?

- Sim, mas, se pensarmos por esse lado, ninguém amaria...

- Exatamente.

O jovem finalmente compreendeu. Ele não estava se desculpando, se eximindo. Ele estava apenas amargando o próprio conhecimento tardio.

- Eu descobri, meu amigo... Que ninguém conhece e nem precisa conhecer o tal amor... Tudo o que você precisa é acreditar que conhece e acreditar que ama... É tudo uma questão de acreditar e ter coragem... A verdade é que todo mundo passa pela vida tendo a sua, e apenas sua, certeza sobre o que é o amor...

- Entendo... Mas se você não a amava ou, pelo menos, não tinha certeza, não teria sido melhor, mesmo, não dizer? Acho que dizer "eu te amo", sem sentir, é mais perigoso que não dizer...

O senhor observou o rapaz por um certo tempo, então apontou para um pequeno arbusto à frente do banco. - Está vendo aquela arvorezinha, ali?

- Sim...

- Pois bem... Você que sabe que frutos são aqueles?

O rapaz olhou mais atentamente para o arbusto. Em meio às folhas, haviam pequenas frutinhas vermelhas.

- Não...

- E se você estivesse em uma situação onde a única coisa disponível para comer fossem aqueles frutos... Apenas aqueles frutos... Ou você come, ou morre de fome... O que você faria?

Bom, eu comeria...

- Por quê?

- Porque, como o senhor disse, ou eu como, ou morro de fome. E sim, já considerei a hipótese deles serem venenosos e eu morrer do mesmo jeito, então... - O jovem parou de falar subitamente. Dentro de sua cabeça, sentiu como se um gatilho fosse apertado. Uma porta, mostrando coisas novas, havia sido aberta. O senhor, vendo a expressão no rosto do outro, apenas riu.

- Exatamente, meu amigo... Exatamente... Como você vê, arriscar faz parte da natureza humana... E aí eu te pergunto... Ou melhor, eu me pergunto... Por que não arriscamos no amor? Por que temos medo de dizer qur amamos, mesmo não amando? É errado? Pode ser, dependendo de quem veja... Pode soar como falsidade, se você quiser... Mas aí é que entra a questão crucial de tudo... E se a fruta não for venenosa? E indo um pouquinho mais longe, podemos considerar o seguinte fato: Comendo ou não comendo a fruta, um dia você irá morrer, não irá? Veneno... Fome... Causas naturais... E aí?

O silêncio do jovem deixava claro que, agora, ele compreendia completamente a ideia daquele senhor. Esse mesmo siêncio se estendeu por um certo tempo, até ser quebrado pelo jovem.

- Mas e ela? A moça? Era sua namorada?

- Não, não... Nunca foi... Sempre quis ser, mas nunca foi... Eu nunca deixei... - O rosto do idoso, até então, sorridente, tomou uma forma triste. - Eu nunca deixei... Ah, e ela fez tanto, mas tanto por mim... - O senhor fechou os olhos, lembrando de cada momento vivido. Pela mente daquele homem idoso, passaram as mais variadas imagens de sua juventude, desde noites à beira de uma lareira, até caminhadas no inverno, de mãos dadas. - Eu nunca a deixei ser minha namorada... Sempre fugi... Sempre tive medo... Eu pensava, ou preferia pensar, que ser livre era não ser de ninguém e não ter ninguém... Fingi ser forte, insensível... E o pior, acreditei na minha própria mentira... Mas, no fim, acabei percebendo que liberdade está longe, muito longe de ser isso... Enfim... Chega de tomar seu tempo, rapaz... Nossos dez minutos já se passaram. - O senhor voltou a sorrir. Como sempre fazia, guardou toda a tristeza e colocou um sorriso nos lábios. - Bom... Resumindo a história, meu amigo... Ela cansou de me esperar... Decidiu ir embora... Começou a namorar uma pessoa... Ao contrário do que teve comigo, o namoro deles começou rápido, progrediu e logo virou casamento... Depois de algum tempo, fiquei sabendo que foram para outro país... Tiveram filhos... Enfim... Tiveram uma vida...

Um novo silêncio recaiu sobre os dois. Esse, bem mais longo que os anteriores.

- E por que o senhor ainda guarda o anel? Lembrança?

- Não, não... É porque ainda pretendo devolvê-lo...

- Quando?

- Não sei... Ainda estou esperando a oportunidade certa...

- Esperando? Mas por que o senhor ainda espera? Não foi o senhor mesmo quem disse que, durante toda a sua vida, a coisa que mais fez foi esperar? E agora? Vai continuar esperando? O tempo passou, vocês já não são mais jovens, o amor dela já não lhe pertence mais, mas o senhor tem uma promessa, uma dívida consigo mesmo... Não espere mais!

O senhor baixou a cabeça, fechou os olhos e sorriu. - Ah, mas é que agora, ao contrário das outras vezes, esperar é minha única opção...

- Eu juro que não entendo...

- Ela morreu há vinte anos... - Aquela declaração foi seguida por um silêncio estrondoso. - Eu estou apenas esperando a hora do reencontro...

O jovem, por um instante, sentiu-se desfalecer. Seu estômago revirou-se. Sua cabeça girou. Uma sucessão de lembranças e planos veio-lhe à mente. O pensamento duro e racional de que a vida termina, de fato, quando morremos, o fez amargar um peso gigantesco dentro do peito. Será, mesmo, que aquele senhor acreditava em um reencontro após a morte? Ou estaria ele ciente da verdade materialista, tão fria e lógica, procurando uma maneira de expiar-se pelos seus erros?

- Bem... - Disse o senhor, levantando-se, auxiliado pela bengala. - Vou indo... Parece que hoje ainda não é o dia do meu trem passar... - Ele sorriu e piscou para o jovem. Este, sem conseguir dizer nada, apenas olhou o senhor misturar-se à multidão de pessoas e pombos que ocupavam a praça. O chão de concreto e o céu nublado, ambos tão cinzas, pareciam emoldurar perfeitamente a pintura que fora a vida daquele velho. Instantes depois, ele já havia sumido. Agora, e novamente, era apenas mais um em meio a todos. Então, o jovem finalmente percebeu que cada uma daquelas pessoas poderia ter uma história igual ou parecida, talvez com o mesmo final, ou não. Tudo dependeria de suas escolhas e de sua coragem. Coragem para assumir que ama; Coragem para ter alguém; Coragem para se permitir ser de alguém. Coragem. Aquela era a palavra-chave. Os sentimentos possuem uma ordem, uma hierarquia. Não se ama sem respeitar; Não se respeita sem compreender; Não se compreende sem relevar; E não se releva sem ter coragem.

Sem coragem, ninguém permite ou aceita.

Sem coragem, ninguém começa, nem termina.

Ele ainda ficou ali por mais alguns instantes, pensando, remoendo aquelas verdades que não paravam de se jogar contra suas convicções.

Ele, seu terno, sua maleta e seus vinte e seis anos, ficaram sentados por um bom tempo, trocando ideias acerca da vida, experiências, vivências e histórias. Permitiu-se demorar um pouco mais, afinal, ao contrário daquele senhor, ele não tinha ninguém para encontrar. Ninguém o esperava. Ele tinha tudo que precisava ter. Era jovem, bem sucedido, independente e, o mais importante, livre. Livre de todos. Livre de qualquer amarra que a vida pudesse impor.

E ele tentaria acreditar nisso pelo resto de sua vida.

quinta-feira, 31 de maio de 2012

...




...


     Você deixa de acreditar no amor, quando percebe que a mais doce das pessoas pode se transformar no pior dos monstros.

     Você deixa de acreditar no amor, quando percebe que a mais doce das pessoas se transformou no pior dos monstros.

     Você deixa de acreditar no amor, quando percebe que você transformou a mais doce das pessoas no pior dos monstros.

...

 

Eu ando pelo mundo
Divertindo gente
Chorando ao telefone


E vendo doer a fome
Nos meninos que têm fome



Esquadros - Belchior / Adriana Calcanhoto

Humano


Hoje,
Guardarei as críticas.

Minha visão do mundo,
Sempre tão inóspita,
Vai ficar em uma gaveta,
Até que eu possa lidar,
Novamente,
Com esses problemas alheios.

Hoje,
Sou humano.
Acordei humano.
Talvez porque ontem,
Ao adormecer,
Tenha me permitido ser
Aquilo que, ao longo de toda a vida,
Tão poucas vezes acabei sendo:
Humano.

O hoje é apenas o reflexo de ontem,
E de tão simples e básico, sempre esquecemos.

Hoje,
Quero chorar as minhas mágoas.
Lamentar as minhas desgraças.
Sofrer as minhas tristezas.

As minhas.

Vou dar um tempo ao mundo.
Que ele siga com seus problemas,
Enquanto eu tento resolver os meus.

Sei que, cedo ou tarde, isso vai passar,
Ou, então, acabar de uma vez por todas.
Mas como nada é eterno,
Me ponho a esperar.

Mas hoje,
Só quero sentar e fazer as pazes com o tempo.
Quando a resolução não está ao alcance de nossos dedos,
O mais sensato é tentar ser amigo das horas.

Hoje,
A fome dos outros pouco me importa.
Se sentem frio, tanto faz.
E se tantos morrem sem razão, não vejo injustiça alguma nisso.
Como eu disse, hoje sou humano.
Sensível, debilitado e estúpido,
Assim como qualquer outro.

Hoje,
Só quero saber de mim
E de mais alguém.

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Desespero




Que vontade insana é essa
Que, sem aviso,
Apodera-se de mim?

Um desejo incontrolável
De te chamar,
De bater à sua porta e, mesmo contra sua vontade,
Te fazer escutar o que tenho a dizer.

Quero te ligar de madrugada,
Tirar você da cama, do sono, do conforto.
Jogar na sua cara o meu sentimento.
Esfregar na sua língua o gosto amargo do sofrimento
E da saudade.

Encontrar você com a mais bagunçada das caras.
Olhos e cabelos de um louco,
Com palavras tão ébrias quanto meu próprio estado,
Carregando, amassada entre minhas mãos, uma foto sua.

Quero te deixar na chuva,
Pensando em tudo o que eu disse.

Quero que sinta pena, raiva, nojo.
Quero que sinta tudo.
Quero que sinta.


Mas não...

Loucuras e sentimentos só são bonitos
E fazem sentido,
Quando são correspondidos.

Gritar e beijar cartas antigas,
Longe de ser compreensível,
Soa como desespero.

E a vontade,
Insana,
Incontrolável,
Já não parece, assim, tão selvagem,
Indomável.

Aos poucos, reprimo tudo o que consigo,
E o que se mostrava tão certo,
Novamente vira dúvida.

Vou te deixar dormir.

Por quanto tempo, não sei.
Mais uma noite, talvez?
Difícil dizer,
Já que esse rompante de ânsia vem quando quer.

E dessa vez,
Curvando-me ante minha própria natureza,
Deixo que a razão cale a insanidade.

Sozinho,
Destilo palavras ao nada.
Poemas guardados em garrafas,
Jogadas ao mar do acaso.


Você me disse como deveria ser,
E eu, como posso, respeito.


Controlo o incontrolável
E, friamente, atravesso mais uma noite.

Corpo


Quem dera
Eu pudesse, enfim, ver seu corpo,
Para, então, ter certeza de sua morte.

A angústia de não saber,
Aos poucos,
Mata aquele que espera.
E enquanto reviro pensamentos
E fantasias,
Imagino cenas e desfechos,
Querendo aceitar, de uma vez por todas, que já não está mais aqui.

Queria saber
Que você, há tempos, deixou de existir.
Que sua presença, ao contrário do que minha esperança teima em insistir,
Já não se encontra em meu universo.

Queria saber
Que, apesar de minha saudade,
A estrada não permite retornos.

Ah, como eu queria...

Como eu queria ver seu corpo.
Como eu queria, sem mais delongas, poder seguir em frente,
Sem esperar pelo improvável.
Pelo impossível.

Como eu queria...

Preciso saber
Se ainda vive ou se já cessou sua permanência.
Preciso saber, pois, só quando souber,
Poderei, também, decidir
Se tento viver
Ou se te acompanho no esquecimento.

domingo, 27 de maio de 2012

Amor


     - Diga-me. Você, que apesar de tão jovem sabe tanto sobre tudo, explique-me o que é o amor.

     - Eu não sei.

     A frustração era visível no semblante daquele que perguntara.

     - Mas... Há algo estranho que acontece comigo, sabe? Quando estou em um roda de amigos, ou em uma festa, sempre vejo uma pessoa em especial.

     - Como assim? Não entendi. Essa pessoa a que você se refere está sempre nesses lugares?

     - Não, não... Ela está comigo... Ou melhor, ela está em mim...

     O questionador permanecia em silêncio, aguardando uma continuação.

     - É difícil de explicar, na verdade... Talvez só quem tenha um alguém, assim como eu tenho, pode entender, mas, basicamente, é como ter alguém que nunca sai do seu pensamento... Nunca...

     - Nossa... Mas e isso não é ruim? Cansativo?

     - Olha... Depende... Se, por exemplo, você não puder estar com essa pessoa, torna-se algo muito ruim... Entende? Não gosto de usar esse termo, pois ninguém pertence a ninguém, mas se você não possuir essa pessoa que está no seu pensamento, ou se você nâo for dela, também, esses pensamentos acabam virando algo muito triste, dolorido... Solitário...

     - Fale mais, por favor...

     - Bem... Eu fico, sim, com outras pessoas... Beijo, troco carinhos e afins, afinal, sou humano e, por enquanto, estou vivo... Entende? Provo de outros sabores, sinto outros cheiros, vou preenchendo meu livro de histórias, mas... Quando me encontro sozinho, lá vem aquela pessoa. Apenas na minha mente, mas vem. Começa como um tipo de saudade que, aos poucos, vai se transformando... Quando dou por mim, já estou olhando fotos antigas e coisas do tipo... Me pego lembrando de bons momentos ou, então, imaginando os que não existem... Enfim... Quando percebo, já estou querendo estar com aquela pessoa... - Ele fez uma pequena pausa, como que buscando alguma informação escondida em algum canto da mente. - Ontem, mesmo, conheci uma pessoa maravilhosa... Tivemos uma noite incrível, aliás... Mas quando cheguei em casa e o silêncio me circundou... Pronto... Lá veio a imagem daquela pessoa... E como se isso não bastasse, há sempre uma voz, embora muda, que fica te martelando a cabeça, dizendo o óbvio: Que você seria capaz de trocar, largar, recusar qualquer pessoa, momento ou oportunidade, por aquela pessoa... Por mais que a sua vida esteja tranquila e rentável, digamos assim, você, sem dúvida alguma, trocaria o que quer que fosse para estar com aquela pessoa... Entende? Sim... Eu sei que é difícil explicar, e não sei nem se isso te ajuda de alguma forma, mas achei interessante comentar e... Enfim...

     Aquele que havia perguntado, tranquilamente fechou os olhos, baixou a cabeça e, de um dos cantos de se sua boca, deixou escapar um sorriso. Um sorriso simples, pequeno, mas extremamene confidente. Sim, aquilo o havia ajudado. Aquela resposta, até então, esparsa, sem nexo, sem ligação direta com a sua pergunta, havia esclarecido muito mais do que ele esperava. Na verdade, aquele discurso, tão inconclusivo, dissera mais do que todas as respostas que ele tivera até aquele momento.

     - É... Talvez a minha pergunta não seja daquelas que exigem uma reposta... - Ele sorriu e olhou para o amigo.

    - É... Talvez não seja, mesmo... - Um sorriso, igualmente confidente, encerrou a conversa.