sábado, 14 de setembro de 2013

Na Hora


                “... Fernanda Quevedo, 24 anos, e o adolescente Bruno Campagnolo, 17, ficaram gravemente feridos e foram encaminhados ao Hospital Municipal. O condutor do veículo, Rafael Fernandes, de 28 anos, morreu na hora.”



É sempre assim.

Fulano morreu na hora. Beltrano morreu no local.

Não sei se essa é uma maneira que os repórteres encontraram de formatar seus textos para que eles fiquem com aquela sonoridade característica de notícia sobre acidente com morte, ou se essas são as palavras que socorristas e policiais usam sempre que precisam dizer à imprensa algo sobre o ocorrido, ainda que por preguiça de formular uma explicação mais detalhada e, por que não, verídica.

É a mesma coisa sobre quem morre dormindo. Quem disse que a pessoa morreu dormindo e, menos provável ainda, de maneira tranquila? Quem garante que o aspirante a cadáver não acordou no meio da noite, agonizou, balbuciou e, por fim, caiu de volta na cama, com a expressão serena que a morte dá assim que os músculos relaxam? Enfim... De qualquer maneira, nem sempre é desse jeito.

Nem sempre é assim.

Lembro que logo após batermos o carro, senti uma dor muito forte e um aperto no peito, além de uma enorme dificuldade para respirar. Pensei até que fosse por causa do cinto de segurança, mas logo percebi que não. Quando forcei um pouco mais a respiração, tentando puxar o ar, ouvi um sibilo, uma espécie de assovio e, ao mesmo tempo, um som borbulhante e molhado. Baixei a cabeça, olhei para o meu corpo e vi que o volante do carro estava enterrado na minha barriga, um pouco abaixo do peito. Respirei forte mais umas duas vezes e o resultado foi o mesmo: ao inspirar, o ar entrava assoviando pela fresta aberta entre minhas costelas; ao expirar, meu fôlego saía na forma de uma espuma avermelhada e borbulhante, pelo mesmo caminho. Por fim, desisti e me contentei em respirar apenas o que a dor e a dificuldade permitiam.

Os vidros trincados das janelas e do para-brisa não me deixavam ver muita coisa, mas, a julgar pelo som distante dos outros carros, imaginei que havíamos caído em algum barranco ou algo do tipo. Àquela hora da noite (sim, eu lembro que já era noite), se o carro tivesse ficado na pista, provavelmente teríamos sido atingidos por algum outro veículo. Confesso que em um momento como esse, com os pensamentos nublados pelo medo e pela dor, você não consegue pensar muito nos outros, mas com o pouco de consciência que ainda me restava, e pressentindo que eu não duraria muito, fiquei, de certa forma, feliz por termos sido as únicas vítimas do acidente. E por falar em vítimas, aliás, lembrei dos caronas no banco traseiro, que ainda não haviam dado nenhum sinal de vida. Até então, não sabia se estavam mortos ou inconscientes. Como o cinto do banco dianteiro do carona não estava funcionando, ninguém foi sentado ao meu lado, felizmente. A julgar pela violência do impacto, aquele que estivesse ali teria sido arremessado para fora do carro.

Não sei ao certo quanto tempo passou desde o momento do acidente, mas quando me dei por conta, o vidro estilhaçado à minha frente refratava as luzes coloridas da ambulância.

Lá fora, enquanto os sons de passos apressados e vozes se misturavam, minha consciência foi dando lugar ao torpor confortável que precede a morte. Ainda levaria algum tempo até que alguém conseguisse abrir ou arrancar uma das portas do carro para me socorrer. Até lá, eu já teria morrido, e quando, enfim, eu fosse encontrado, meu corpo já estaria frio, como o corpo de alguém que já está morto há algum tempo.

Como o corpo de alguém que morreu, ironicamente, na hora do acidente.

E então, com toda a autoridade e a experiência que o cargo delega a alguém, meu cadáver seria abordado por um enfermeiro que, sem pensar duas vezes, diria:

– Esse aqui morreu na hora.

Mas eu não morri na hora, não. Nem sempre é desse jeito.

Nem sempre é assim.

terça-feira, 11 de junho de 2013

Limbo



Certa vez ele me disse que, quando criança, queria poder ser invisível e intangível. Queria poder atravessar muros e paredes. Entrar nas casas, à noite, e observar as pessoas dormindo. Confesso que sua inocência e pureza me comoveram, pois, ao contrário do que se poderia pensar, ele não queria usar seu poder para furtar objetos ou, na pior das hipóteses, aproveitar-se de alguém.

Na sua cabeça de menino, pessoas fortes não deveriam dormir. Não é que não pudessem dormir, mas a fragilidade que o sono concede às pessoas, certamente não combina com alguém que, enquanto está acordado, é forte, bravo ou mal humorado. Ele não conseguia, por exemplo, imaginar um bandido ou um policial dormindo tranquila e serenamente, como um bebê, com as mãos sob o travesseiro e com um sorriso bobo no rosto, fruto de algum sonho engraçado. Os garotos mais velhos da escola, por exemplo, tão maiores e mais fortes que ele, também não pareciam ser pessoas que dormiam. Eles namoravam, matavam aula, compravam – e ganhavam – brigas com os garotos menores. Definitivamente, eles não pareciam ser do tipo de pessoa que, durante a noite, guarda a truculência em algum lugar e fecha os olhos para dormir, como faziam, justamente, os garotos mais fracos, vítimas de suas chacotas e agressões.

De suas palavras, lembro dele ter dito exatamente o seguinte:

“Talvez eu quisesse ser um fantasma, ou algo do tipo. Só sei que queria ser algo que pudesse ver os outros sem ser visto, entende? Pensei em ser anjo da guarda, mas não era bem isso que eu queria. Eu queria algo mais imparcial, neutro... Como um fantasma, mesmo! Hoje, adulto, vejo mais sentido nesse meu desejo tão surreal. Eu gosto de observar as pessoas, anotar seus trejeitos e manias, calcular probabilidades e prever comportamentos. E sobre a parte do fantasma, bem... Entendi perfeitamente quando veio a depressão. Talvez você não saiba, mas para aqueles que foram tocados pela mão dessa tristeza incurável, a morte deixa de causar medo e passa a ser uma hipótese confortadora, serena, quase gostosa, por assim dizer. A morte, para essas pessoas, na qual me incluo, parece tão agradável quanto um abraço carinhoso.”

Com o tempo, perdemos contato e nos afastamos. Apesar de nosso vínculo de amizade ter se tornado extremamente forte, nunca mais nos encontramos, embora, também, não tenha ficado mágoa alguma com relação a esse afastamento. Fomos naturalmente embora um do outro, tal como uma estação finda, ou uma canção acaba. Nosso fim se deu como todos os fins deveriam se dar. Infelizmente, não restou contato algum. Sem endereços, comentários ou suposições de onde ele poderia estar. Simplesmente, desapareceu.

E eu nunca mais o vi.

Mas o fato é que, por vezes, quando acordo no meio da noite, sinto como se alguém, em silêncio, me observasse. Noutras, sinto meu colchão afundar levemente em um dos cantos, como se alguém, cuidadosamente, a fim de não me acordar, ali sentasse. Confesso que nunca me dispus a olhar, mas não por medo. Muito pelo contrário, aliás, já que sempre que me vejo nessa situação, um estranho conforto me envolve.

Eu não sei se ele realmente virou um fantasma ou se a saudade, por vezes, se materializa na forma de ilusão, mas seja lá o que for, me faz lembrar dele. Mais do que isso, me faz lembrar que ele se foi, ainda que eu não saiba nem como e nem para onde.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Ofuscante



Ele escutou o assovio, mas não conseguiu identificar sua origem. Seguiu caminhando.

Novamente, o mesmo assovio. Protegendo os olhos da claridade com uma das mãos, ele ergueu a cabeça em direção ao céu. Eram quase duas horas de uma tarde quente e de sol ofuscante. Com dificuldade, vislumbrou alguém que lhe acenava da janela de um apartamento. Seu rosto contorceu-se em uma careta, enquanto ele tentava identificar a figura oculta pela luz. Enfim, quando cruzou sob a sombra de um poste, pôde ver nitidamente de quem se tratava. Era Gabriel, um amigo de longa data, mas com o qual não mantinha muito contato. Conheciam-se já há algum tempo, mas a relação de ambos, embora sempre muito cordial, nunca fora muito estreita. Mundos diferentes, como costumava pensar Rafael.

- E aí, Rafa! Beleza?

- Opa! E aí, Gabriel! Tudo tranquilo! E com você?

- Aqui, né... - Gabriel respondeu sem vontade e riu, como que entediado com a própria situação. - Tá indo pro trampo? Quer uma carona?

- Não, precisa, cara! Imagina! Eu trabalho a umas duas quadras daqui! Fique aí em cima que tá melhor que aqui na rua! - Rafael riu, tentando não sair da sombra do poste.

- Beleza, então! Até mais! - Gabriel acenou e saiu da janela.

Rafael seguiu seu caminho até o trabalho. A pequena conversa que tivera com o amigo o fez recordar de várias coisas. Lembrou-se de como ele e Gabriel haviam se conhecido, quando Rafael ainda trabalhava como frentista no posto onde o amigo sempre abastecia seu carro. Um carro importado, aliás.

Filho do dono de uma grande empreiteira, Gabriel sempre tivera tudo do bom e do melhor: Carros, roupas, dinheiro, viagens. Gabriel, a propósito, havia passado dois anos na Alemanha, estudando e aprimorando o idioma. Ao menos era o que pensava seu pai, já que a verdade era muito diferente da versão contada por Gabriel. Com todos os custos bancados, o jovem, na época com vinte e dois anos, viajou pela Europa inteira, experimentando todas as bebidas, drogas e garotas possíveis.

Ao retornar ao Brasil, o pai ofereceu-lhe um cargo administrativo na própria empresa, o qual foi gentilmente recusado por Gabriel, que explicou ao pai que, infelizmente, não fazia parte de seu futuro vestir terno e assinar papéis. Gabriel era um artista. Músico, pintor, produtor visual. Gabriel gostava de reunir seus amigos em casa, ensaiar algumas músicas, beber e fumar a noite inteira. Gabriel gostava de pintar seus quadros e escrever seus poemas, embora eles não dessem retorno financeiro algum. Enfim, Gabriel era uma dessas almas livres, como tantas outras que, se não fosse pelos pais e pela sorte de uma vida abonada, morreria de fome.

Como alguém podia viver assim? Sem emprego, sustentado pelos pais, bebendo, fumando e gastando o tempo com futilidades de todos os tipos. Aos vinte e quatro anos, Gabriel sequer pensava em sair de casa, afinal, ali tinha tudo que precisava para viver, ou sobreviver.

Muitas vezes Rafael se viu questionando a si mesmo sobre esse julgamento acerca de Gabriel. No fundo, não seria apenas inveja disfarçada? Afinal, ele também tinha vinte e quatro anos e ainda morava com os pais, a única diferença é que ele, ao contrário do amigo rico, queria sair de casa e ter a própria vida.

A bem da verdade, Rafael era apenas mais um. Um empregado, um funcionário, um proletário, ou como a mídia gosta de vender, um batalhador. Alguém que pega no batente às sete e meia da manhã, faz milagres para almoçar em um intervalo de 45 minutos e volta para casa no fim do dia, depois de aturar clientes mal educados e um patrão obtuso, seis dias por semana.

Não. Não era inveja. Apesar da mediocridade da própria vida, Rafael não sentia inveja da mediocridade da vida alheia. Ambos eram medíocres, sim, mas de maneiras diferentes. Um pecava pela falta, o outro, pelo excesso, tanto de sorte como de oportunidades.

Como alguém podia viver daquela maneira?

Como alguém podia chegar ao fim do dia e não sentir-se estafado, justamente, por não ter feito nada? Como ele conseguia conviver com a sensação de ser um preguiçoso, um inútil, quase um parasita? 

Como era possível?

Talvez, quem sabe, ele gostasse de viver assim.


***


Às duas e meia da tarde, enquanto Rafael tentava se desvencilhar de um cliente mal educado, o porteiro encontrou o corpo de Gabriel na calçada. As pedras quentes do calçamento secavam rapidamente seu sangue, mas não davam conta de beber tudo o que saía pela fenda em sua cabeça. A vida do rapaz escorria tranquilamente pelo canto da rua em direção a uma boca de esgoto.

A decisão fora tomada rapidamente, mas pensada há muito tempo. Há alguns anos, para ser mais exato. Entre o impulso, a janela e o solo, foram poucos segundos de queda.

Afinal, como alguém podia viver daquela maneira?

Como alguém podia chegar ao fim do dia e não sentir-se estafado, justamente, por não ter feito nada? Como ele conseguia conviver com a sensação de ser um preguiçoso, um inútil, quase um parasita?

Como era possível?

Talvez, quem sabe, ele gostasse de viver assim.