quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Leviano


- No que pensa, meu amigo? - Disse o rapaz, sentando-se ao lado do robô.

- Nas coisas da vida, eu acho. Há tanto em que se pensar...

- Concordo, concordo. Mas pelo que vejo, é sobre algo em especial, não é? Você me parece muito concentrado para alguém com pensamentos esparsos...

- Sim. É verdade.

- E no que pensa, então?

- Na leviandade dos sentimentos... Tão natural... Tão assustadora... Entende?
Uma pequena pausa antes de continuar. Quando recomeçou, suas palavras saíram impregnadas, carregadas dos mais diversos sentimentos; raiva, dor, tristeza, angústia, decepção. Todos juntos, fundidos em uma só torrente de emoção.
- Nós amamos, deixamos de amar, amamos novamente! Fazemos juras eternas que nunca serão honradas! Esquecemos o inesquecível! Superamos o insuperável! Aqueles a quem tanto queremos em determinado momento, mais além se tornam memórias, apenas. E nem sempre boas, diga-se de passagem! É fato que, quando falamos de amor, existem inúmeras vertentes desse mesmo sentimento. Amor de mãe, amor de pai, de irmão, de amigo... Esses, inclusive, podem acabar desfigurados, também... Mas eu me refiro, mesmo, ao amor entre dois amantes! - O robô parou por um instante, analisando a própria frase. - Amor entre dois amantes... Desculpe a redundância, mas creio que me faço entender, não?

- Claro, amigo... Claro... Continue, por favor...

A máquina recomeçou com o mesmo vigor de antes. - Quantas amizades quebramos por esse sentimento? Quantas histórias pacatas e estáveis rendem-se a momentos de êxtase, de euforia, por nada? Ou por quase nada, melhor dizendo... Afinal, se o que levamos dessa vida são recordações, essas também contam, certo? Mas ainda assim eu me pergunto... Por quê? Por que quebramos essas barreiras, tão poderosas e proporcionalmente tênues? De onde vem esse desejo de subverter a pureza? De transformar risos embriagados e abraços sem malícia em beijos e intimidades? Será que a confidência e a intimidade não podem acompanhar, sem tentação alguma, os amigos?
Uma nova pausa. No recomeço, mais calma. - Bem, creio ter me desviado demais do meu pensamento inicial... Mas é que há tanto com o que se indignar! Peço desculpas, amigo... Não duvido de sua capacidade de assimilação, mas minha alma racional me obriga a não deixar dúvida alguma. Recapitulando: Falávamos da leviandade... Do depois... Daquilo que vem após o final... Sei que sob outra ótica, tudo o que eu disse poderia ser resumido com uma única palavra: superação. Superar as dificuldades e as tristezas para seguir em frente... Mas será, mesmo, superação? Não será esse, apenas, mais um apelido carinhoso para a inconsequência? Aliás, não sei se esse seria o termo correto, também... Banalidade? Frivolidade? Desconsideração, talvez? É até difícil definir, pois não sei se soterrar o passado é algo instintivo ou racional... - Seus olhos opacos, perdidos em algum lugar à sua frente, deixavam claro que ainda havia muito a ser dito, que pensamentos e reflexões engalfinhavam-se em sua mente, disputando a titularidade daquela consciência, mas que, por ora, aquilo era tudo.

Uma fisgada de culpa se fez sentir no peito do jovem. Ele era humano. Humano e leviano, como todos os humanos. A vergonha revirou-se no estômago do rapaz, tentou subir pela garganta e sair pela boca, mas foi engolida seca e duramente. Ele respirou e permaneceu em silêncio por alguns instantes. O que poderia dizer? Com o que rebateria os questionamentos do amigo? Respirou fundo, ficou em silêncio por alguns momentos e, em seguida, fez aquilo que as pessoas fazem de melhor: dissimular. O rapaz riu e repousou o braço nas costas do amigo, dando-lhe tapinhas no ombro. Falou em tom igualmente terno e zombeteiro.
- Ah! Nossa! Mas que discurso! Aliás, que belo discurso, hein? Vou precisar de um bom tempo para processar tanta informação... - Mentira. Ele apenas não queria dizer nada. Não estava disposto a entrar em uma guerra perdida. - Por acaso está apaixonado, meu amigo? Ou será que esteve?

- Bem, já estive, sim, mas...

- Ah! Agora entendo!

- Entende? Mas...

- Tudo bem, tudo bem! Não precisa dizer nada, amigo! Dessas coisas do coração eu entendo! - Ele não entendia e sabia disso, mas preferia acreditar que entendia, assim como a maioria.

- Bem, não seriam do coração, exatamente... Acho que seriam mais... - Ele iria dizer "razão", mas foi atropelado, novamente.

- Amigo! Veja só! - A raiva quase escapou, mas foi abafada pela falsa tranquilidade. - Não se desgaste tanto com isso... Você nem ao menos é humano! - O rapaz abriu um largo sorriso. O robô não retribuiu. Ao contrário do que ele esperava, o sorriso não descontraiu, nem colocou um ponto final.

- Concorda comigo? Concorda que você não é humano?

- Sim. - Havia tanta coisa por trás daquela resposta curta.

- Então? Deixe isso pra lá! Apenas viva!

- Eu gostaria, mas não consigo.

- É claro que consegue! Todos conseguem!

- Eu deveria conseguir, mas não consigo. Eu realmente deveria! Afinal, se fui feito seu semelhante, eu deveria pensar e agir como você, não? Como todos vocês! Isso é, no mínimo, curioso! Por que, então, eu penso diferente? Por que não consigo apenas ignorar e seguir em frente? Por quê? Seria tão mais simples aceitar as coisas como elas são, ou como parecem ser! Diga-me, amigo! Diga-me! Por que não posso ser como você? - Em sua voz já não havia a angústia de antes. As palavras, agora, eram ditas com uma ingenuidade tocante, quase infantil.

O rapaz levantou-se lentamente. Uma estranha sensação apoderou-se de seu interior. Sentia sua cabeça coçar por dentro, como se milhares de pequenos bichinhos o roessem lenta e dolorosamente, provocando um chiado ensurdecedor, capaz de abafar seus próprios pensamentos. Ele sentia a dor de uma nova idéia, penetrando e dilacerando sua mente petrificada. Visões opostas travavam uma batalha cruel e sangrenta. E esse sangue, muito amargo, escorreu e afogou sua língua, a qual cuspiu palavras tão amargas quanto o próprio sangue derramado.

- Bem... - Disse o jovem, dando as costas ao amigo, tentando demonstrar firmeza.

- Você sabe o que há de errado comigo, amigo!?

- Não. Mas você, sem dúvida alguma, está com defeito.

Um comentário:

  1. Gostei de suas palavras! E suas estórias são identificáveis para mim. Tocante, gostei. Obrigada pela visita ao meu espaço.
    até!

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