terça-feira, 30 de outubro de 2012

Folha Seca

   Finalmente, depois de tanto tempo, conseguia sentir aquela sensação maravilhosa, outra vez.

   Apesar de todos os anos vividos à beira do fim, ele não havia esquecido como era sentir-se daquela maneira, tão livre e tão leve, e tal era a sua leveza, que sentia-se capaz de sair voando por sobre a cidade, como tantas vezes fizera em pensamento. Aliás, não apenas pensava ser capaz, como de fato, era, e assim o fez.

   Ele fechou os olhos, abriu os braços e deixou que sua mente o levasse a todos os lugares possíveis. Permitiu-se sobrevoar todas as ruas, becos e esquinas. Todas as praças, quintais e avenidas. Lugares que conhecia tão bem, por ter, em incontáveis noites, percorrido a cidade inteira em busca de alívio para a sua mente cansada, confusa e perdida.

   Mas agora ele estava ali, único e sublime. Outra vez, era senhor de si e de seus pensamentos, dono de seu próprio destino e de suas vontades. E enquanto voava, ia deixando para trás todas as coisas ruins e pesadas. As mágoas e os pensamentos tristes iam ficando pelo caminho, conforme ele avançava em sua viagem rumo ao desconhecido. O desconhecido que aguarda por todos aqueles que decidem deixar seu passado no devido lugar.

     A sensação, realmente, era indescrtível.

   Até o divino, abolido de sua vida, voltou a ter lugar em seus pensamentos. Em meio à euforia, um agradecimento quase inconsciente... Deus! Como era bom sentir-se assim novamente!

   O vento no rosto, soprando rápido. O frio gostoso da noite a tocar-lhe a pele. O cheiro e o gosto do silêncio apaziguador.

   Por trás das pálpebras cerradas, seus olhos mal conseguiam distinguir os borrões coloridos que passavam velozmente. Lembrou-se de seu pai e das tardes ensolaradas no parque, aos finais de semana, onde sempre brincavam de girar, e de como o sol inundava de cores seus olhos fechados, tal como as luzes da cidade faziam agora. Como uma criança, ele riu. Sentiu seus braços serem pegos por mãos fortes e paternas, e seu corpo, desobedecendo a gravidade, passou a não pesar nada, enquanto era girado infinitamente naquela ciranda tão familiar.

   E como uma criança, também, ele chorou. Chorou ao lembrar de ter visto todos os bons momentos tornarem-se apenas lembranças distantes. Chorou quando sentiu o aroma de grama verde, aos poucos, ser transformado em cheiro de álcool e fumaça de cigarro. Seus olhos, agora molhados, transformaram-se em um caleidoscópio de cores e sentimentos desordenados, refletindo e refratando memórias de um tempo que jamais voltaria. Na verdade, tempo algum jamais volta, mas alguns vão além disso, restando apenas a opção de soterrá-los.

   No entanto, tal como tudo mais que lhe era penoso, as tristezas foram se esvaindo conforme o voo avançava. O vento, ainda veloz, fazia suas roupas tremularem, como os lençóis brancos e limpos que a mãe costumava pendurar no varal e que dançavam conforme o ritmo da brisa. Suas lágrimas, frias e quase secas, fizeram-no lembrar das vezes em que, após ter a certeza de estar sozinho, corria de encontro aos lençóis úmidos, recém lavados, apenas para sentir o frescor em seu rosto.

   Ele nunca esqueceu do que sua mãe dissera sobre os lençóis no varal. Para ela, eles passavam uma sensação tão, mas tão grande de liberdade, que ela gostaria de ser um deles, apenas para sentir o que eles sentiam. Não demorou muito até ele formular um novo pensamento e concluir que, de fato, os lençóis não são livres, já que estão sempre presos ou dobrados sobre a corda. Uma liberdade relativa e limitada. Mas ele achou melhor não explicar seu ponto de vista. Se alguém sonha com essa visão de liberdade, talvez seja porque a vida que leva está aquém daquilo que toma por referência. O simples, e até mesmo o falso, podem ser muito ou tudo para alguém, e ninguém tem o direito de destruir as ilusões alheias, por mais tolas que nos pareçam.

   Novamente, um pouco de tristeza. Lembrou-se de ter conhecido alguém assim, que mesmo sem o direito, podou asas e destruiu fantasias. Alguém muito próximo. Para ser mais exato, mais próximo do que gostaria.

   Mas a viagem, felizmente, não havia terminado, e ele ainda dispunha de muito tempo para livrar-se das dores e das culpas que ainda possuía.

   Deixou para trás a vergonha do fracasso na vida e a impotência diante do amor sincero de alguém.

   Desvencilhou-se da couraça e do escudo.

   E as armas, manchadas com o próprio sangue, já que sempre acabou machucando mais a si do que aos outros, também foram descartadas.

   Agora possuía apenas o próprio corpo, desnudo de culpa, e a alma, enfim, possuidora de redenção.

   Leve como uma folha seca, planou serenamente antes de aterrisar, enquanto revivia imagens da antiga escola, de seus oito anos e das amoreiras douradas pelo outono, que sempre teciam carpetes para as brincadeiras no recreio.

   Seu corpo tocou o solo. Sua mente, carente do corpo já destruído, apagou-se. A consciência, antes tão conturbada, finalmente deu lugar ao torpor reconfortante. E em três segundos de queda livre, do topo estrelado de um prédio ao cinza áspero da calçada, sua vida fez-se filme, tal como afirmam ser todos aqueles que estiveram perto de voar pela última vez.

Um comentário:

  1. Antes do meio eu já entendia que seria o começo do fim... uma viagem tao livre só pode ser quando a alma já se despede do corpo. Para mim voce é indescritivelmente especial em conseguir traduzir as tantas vezes que eu me imaginei nesse momento, porém sei e respeito que tudo tem sua hora.

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