terça-feira, 27 de novembro de 2012

Parafusos

     - Por que você está fazendo isso comigo?

     Ela não respondeu. Permaneceu de costas para ele, segurando as lágrimas. O rosto duro, inflexível. Os lábios cerrados, numa expressão de quase fúria.

     Ele, por sua vez, não fazia questão de segurá-las. Embora sua fala fosse tranquila e ele não estivesse aos prantos, seus olhos transbordavam.

     - Diga, por favor, por quê?

     Ela se virou de súbito e o golpeou violentamente com uma grande e pesada chave de boca. Ele cambaleou, levou uma das mãos ao rosto e recuou. Tentou, em vão, agarrar-se às paredes, riscando faíscas com as pontas de seus dedos, mas caiu desajeitadamente sobre uma pilha de latas de óleo vazias e engrenagens velhas. - Pare, por favor... - Um de seus olhos havia sido quebrado pelo impacto. A luz azul, que antes preenchia uma de suas órbitas, extinguia-se lentamente. - Pare... Por quê?

     Ela não ouvia. Ao menos, parecia não ouvir, pois avançou novamente sobre ele com uma fúria descontrolada. Primeiro, acertou-lhe os joelhos. Ele, já caído, apenas pôde ouvir o estalo de suas articulações de metal, seguido de um chiado agudo e quente, em forma de vapor.

     - Você não precisa fazer isso... - A calma em sua voz dera lugar apenas à tristeza.

     - Sim, eu preciso! - Disse ela, entredentes, enquanto se preparava para um novo golpe, mirando os ombros daquele que estava jogado ao chão. - Eu preciso... Fazer isso... - Suas palavras, cheias de uma fúria incompreensível, saíam entrecortadas pelo choro e pelos soluços. - Eu preciso! Eu preciso, sim! - E enquanto vociferava, seguia batendo. Suas mãos, doloridas pelo impacto da chave no corpo metálico do outro, tremiam, mas agarravam-se com uma força descomunal à ferramenta, e quanto mais seus olhos se enchiam de lágrimas e raiva, mais fortes eram os golpes.

     Ele já não dizia mais nada. O olho que ainda lhe restava focava tristemente o rosto daquela criatura tão pequena e severa que, minutos antes, tão fraca e ingênua, sorria em sua presença, abraçando-o e dizendo-se feliz por ter conseguido construir a coisa mais incrível de toda a sua vida: Ele.

     - Você não me quer mais, é isso? - Mal ele terminou de falar, e a chave acertou-lhe a boca, amassando metade do rosto. Não houve resposta. Apenas golpes e mais golpes. Ela estava decidida a terminar com ele e com aquilo tudo.

     - Você... Não precisa... - A voz saía trêmula e com dificuldade, pois seu rosto estava danificado demais.

     Enfim, ela parou. Estava cabisbaixa e ofegante. O suor brotava exageradamente de sua testa. A ferramenta, que segurava tremulamente com uma das mãos, pendia, quase encostada no chão. Ele não sabia se ela estava apenas cansada ou se seus apelos haviam surtido algum efeito. Naquele estranho intervalo, ele tentou olhar para si mesmo. Suas pernas, destruídas pelos golpes, eram apenas dois pedaços retorcidos de metal e fios. Um de seus braços havia sido arrancado e estava a alguns centímetros de seu corpo. O outro que ainda restava, mal tinha forças para ser erguido.

     - Veja... - Disse ele, tentando levantar a mão na direção dela. - Veja... - Entre seus dedos tortos e quebrados, um havia permanecido quase intacto, e nele havia um sinal gravado: Um coração dentro de uma engrenagem. - Você se lembra? - Ele tentou sorrir com o que ainda lhe restava de um sorriso.

     Ela ajoelhou-se diante dele e o abraçou. A ferramenta que estava em sua mão tilintou ao cair no chão, fazendo ecoar um som estridente, mas breve. - Sim... Eu lembro...

     Eu entendo, pequena... Você já não me quer mais... - Sua voz, embora carregada de tristeza, parecia conter toda a compreensão existente no mundo. - Você não precisa fazer isso... - Ele tentou sorrir novamente. - Deixe-me aqui, por favor. Pode ser assim, mesmo... Não precisa sequer me consertar... Eu sei cuidar de mim... - Ele riu. - Você também me ensinou a fazer isso, lembra?

     Ela riu e chorou com a lembrança.

     O começo fora tão difícil. Tantos testes que deram errado, tantas tentativas mal sucedidas. Mas agora ele estava ali, praticamente perfeito, carregando apenas os defeitos que até os mais certos possuem, mas ela já não o queria mais. E ele, com aquela humildade gigantesca, quase irritante, dificultava ainda mais as coisas. Não, ela não o queria mais. Talvez até o quisesse, mas não poderia mais querer. Foram tantos ferimentos e noites mal dormidas. Tanto tempo perdido, tentando transformar aquele robô estúpido em algo melhor. Não... Ela não podia seguir. A sua vida, ao contrário da dele, não poderia ser eterna. Ela, de carne e osso, sabia que o tempo para os dois corria de maneiras diferentes. Ele, se assim quisesse, poderia viver eternamente, enquanto houvesse uma bateria em seu peito.

     Ela, suavemente, desfez o abraço. Inclinou-se um pouco para trás e, sentada nas pernas do robô, o encarou, ao mesmo tempo, com ternura e tristeza.

     - Você não precisa fazer isso... - A voz dele era quase um sussurro. - Você não precisa me tirar da sua vida para poder vivê-la...

     - Eu sei... - Ela respondeu. - Eu sei... - Ela inclinou-se para frente, passou a mão em seu rosto desfigurado, deu um longo beijo na testa dele e cochichou em seu ouvido. - Eu sei, me desculpe... - Levantou-se, foi até o local onde estava a chave e, com a ferramenta em mão, voltou até ele. Cuidadosamente, deitou-o e ajoelhou-se ao seu lado.

     - Por favor... Não...

   - Desculpe-me... - Suas lágrimas caíam silenciosamente sobre o peito de metal amassado, enquanto, um a um, ela retirava os parafusos que protegiam o interior daquele ser. Enfim, ela o abriu. Com dois puxões, arrancou um punhado de fios, e a luz que ainda restava no olho preservado do robô, por fim, apagou-se.

     Ela se levantou, enxugou as lágrimas e guardou os parafusos no bolso do jaleco. Eles seriam úteis em um futuro próximo.

     Já há algum tempo ela vinha trabalhando em um novo projeto.

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