“...
Fernanda Quevedo, 24 anos, e o adolescente Bruno Campagnolo, 17, ficaram
gravemente feridos e foram encaminhados ao Hospital Municipal. O condutor do
veículo, Rafael Fernandes, de 28 anos, morreu na hora.”
É sempre
assim.
Fulano morreu
na hora. Beltrano morreu no local.
Não sei se
essa é uma maneira que os repórteres encontraram de formatar seus textos para
que eles fiquem com aquela sonoridade característica de notícia sobre acidente com
morte, ou se essas são as palavras que socorristas e policiais usam sempre que
precisam dizer à imprensa algo sobre o ocorrido, ainda que por preguiça de
formular uma explicação mais detalhada e, por que não, verídica.
É a mesma
coisa sobre quem morre dormindo. Quem disse que a pessoa morreu dormindo e,
menos provável ainda, de maneira tranquila? Quem garante que o aspirante a
cadáver não acordou no meio da noite, agonizou, balbuciou e, por fim, caiu de
volta na cama, com a expressão serena que a morte dá assim que os músculos
relaxam? Enfim... De qualquer maneira, nem sempre é desse jeito.
Nem sempre é
assim.
Lembro que logo
após batermos o carro, senti uma dor muito forte e um aperto no peito, além de
uma enorme dificuldade para respirar. Pensei até que fosse por causa do cinto
de segurança, mas logo percebi que não. Quando forcei um pouco mais a
respiração, tentando puxar o ar, ouvi um sibilo, uma espécie de assovio e, ao
mesmo tempo, um som borbulhante e molhado. Baixei a cabeça, olhei para o meu corpo e
vi que o volante do carro estava enterrado na minha barriga, um pouco abaixo do
peito. Respirei forte mais umas duas vezes e o resultado foi o mesmo: ao
inspirar, o ar entrava assoviando pela fresta aberta entre minhas costelas; ao
expirar, meu fôlego saía na forma de uma espuma avermelhada e borbulhante, pelo
mesmo caminho. Por fim, desisti e me contentei em respirar apenas o que a dor e
a dificuldade permitiam.
Os vidros
trincados das janelas e do para-brisa não me deixavam ver muita coisa, mas, a
julgar pelo som distante dos outros carros, imaginei que havíamos caído em
algum barranco ou algo do tipo. Àquela hora da noite (sim, eu lembro que já era
noite), se o carro tivesse ficado na pista, provavelmente teríamos sido atingidos
por algum outro veículo. Confesso que em um momento como esse, com os
pensamentos nublados pelo medo e pela dor, você não consegue pensar muito nos
outros, mas com o pouco de consciência que ainda me restava, e pressentindo que
eu não duraria muito, fiquei, de certa forma, feliz por termos sido as únicas
vítimas do acidente. E por falar em vítimas, aliás, lembrei dos caronas no
banco traseiro, que ainda não haviam dado nenhum sinal de vida. Até então, não
sabia se estavam mortos ou inconscientes. Como o cinto do banco dianteiro do
carona não estava funcionando, ninguém foi sentado ao meu lado, felizmente. A
julgar pela violência do impacto, aquele que estivesse ali teria sido
arremessado para fora do carro.
Não sei ao
certo quanto tempo passou desde o momento do acidente, mas quando me dei por
conta, o vidro estilhaçado à minha frente refratava as luzes coloridas da
ambulância.
Lá fora,
enquanto os sons de passos apressados e vozes se misturavam, minha consciência
foi dando lugar ao torpor confortável que precede a morte. Ainda levaria algum
tempo até que alguém conseguisse abrir ou arrancar uma das portas do carro para
me socorrer. Até lá, eu já teria morrido, e quando, enfim, eu fosse encontrado,
meu corpo já estaria frio, como o corpo de alguém que já está morto há algum
tempo.
Como o corpo
de alguém que morreu, ironicamente, na hora do acidente.
E então, com
toda a autoridade e a experiência que o cargo delega a alguém, meu cadáver
seria abordado por um enfermeiro que, sem pensar duas vezes, diria:
– Esse aqui
morreu na hora.
Mas eu não
morri na hora, não. Nem sempre é desse jeito.
Nem sempre é
assim.
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