Ele escutou o assovio, mas não
conseguiu identificar sua origem. Seguiu caminhando.
Novamente, o mesmo assovio.
Protegendo os olhos da claridade com uma das mãos, ele ergueu a cabeça em
direção ao céu. Eram quase duas horas de uma tarde quente e de sol ofuscante.
Com dificuldade, vislumbrou alguém que lhe acenava da janela de um apartamento.
Seu rosto contorceu-se em uma careta, enquanto ele tentava identificar a figura
oculta pela luz. Enfim, quando cruzou sob a sombra de um poste, pôde ver
nitidamente de quem se tratava. Era Gabriel, um amigo de longa data, mas com o
qual não mantinha muito contato. Conheciam-se já há algum tempo, mas a relação
de ambos, embora sempre muito cordial, nunca fora muito estreita. Mundos
diferentes, como costumava pensar Rafael.
- E aí, Rafa! Beleza?
- Opa! E aí, Gabriel! Tudo
tranquilo! E com você?
- Aqui, né... - Gabriel
respondeu sem vontade e riu, como que entediado com a própria situação. - Tá
indo pro trampo? Quer uma carona?
- Não, precisa, cara! Imagina!
Eu trabalho a umas duas quadras daqui! Fique aí em cima que tá melhor que aqui
na rua! - Rafael riu, tentando não sair da sombra do poste.
- Beleza, então! Até mais! -
Gabriel acenou e saiu da janela.
Rafael seguiu seu caminho até
o trabalho. A pequena conversa que tivera com o amigo o fez recordar de várias
coisas. Lembrou-se de como ele e Gabriel haviam se conhecido, quando Rafael
ainda trabalhava como frentista no posto onde o amigo sempre abastecia seu
carro. Um carro importado, aliás.
Filho do dono de uma grande
empreiteira, Gabriel sempre tivera tudo do bom e do melhor: Carros, roupas,
dinheiro, viagens. Gabriel, a propósito, havia passado dois anos na Alemanha,
estudando e aprimorando o idioma. Ao menos era o que pensava seu pai, já que a
verdade era muito diferente da versão contada por Gabriel. Com todos os custos
bancados, o jovem, na época com vinte e dois anos, viajou pela Europa inteira,
experimentando todas as bebidas, drogas e garotas possíveis.
Ao retornar ao Brasil, o pai
ofereceu-lhe um cargo administrativo na própria empresa, o qual foi gentilmente
recusado por Gabriel, que explicou ao pai que, infelizmente, não fazia parte de
seu futuro vestir terno e assinar papéis. Gabriel era um artista. Músico,
pintor, produtor visual. Gabriel gostava de reunir seus amigos em casa, ensaiar
algumas músicas, beber e fumar a noite inteira. Gabriel gostava de pintar seus
quadros e escrever seus poemas, embora eles não dessem retorno financeiro
algum. Enfim, Gabriel era uma dessas almas livres, como tantas outras que, se não
fosse pelos pais e pela sorte de uma vida abonada, morreria de fome.
Como alguém podia viver assim?
Sem emprego, sustentado pelos pais, bebendo, fumando e gastando o tempo com
futilidades de todos os tipos. Aos vinte e quatro anos, Gabriel sequer pensava
em sair de casa, afinal, ali tinha tudo que precisava para viver, ou
sobreviver.
Muitas vezes Rafael se viu
questionando a si mesmo sobre esse julgamento acerca de Gabriel. No fundo, não
seria apenas inveja disfarçada? Afinal, ele também tinha vinte e quatro anos e
ainda morava com os pais, a única diferença é que ele, ao contrário do amigo
rico, queria sair de casa e ter a própria vida.
A bem da verdade, Rafael era
apenas mais um. Um empregado, um funcionário, um proletário, ou como a mídia
gosta de vender, um batalhador. Alguém que pega no batente às sete e meia da
manhã, faz milagres para almoçar em um intervalo de 45 minutos e volta para
casa no fim do dia, depois de aturar clientes mal educados e um patrão obtuso,
seis dias por semana.
Não. Não era inveja. Apesar da
mediocridade da própria vida, Rafael não sentia inveja da mediocridade da vida
alheia. Ambos eram medíocres, sim, mas de maneiras diferentes. Um pecava pela
falta, o outro, pelo excesso, tanto de sorte como de oportunidades.
Como alguém podia viver
daquela maneira?
Como alguém podia chegar ao
fim do dia e não sentir-se estafado, justamente, por não ter feito nada? Como
ele conseguia conviver com a sensação de ser um preguiçoso, um inútil, quase um
parasita?
Como era possível?
Talvez, quem sabe, ele gostasse de viver
assim.
***
Às duas e meia da tarde,
enquanto Rafael tentava se desvencilhar de um cliente mal educado, o porteiro
encontrou o corpo de Gabriel na calçada. As pedras quentes do calçamento
secavam rapidamente seu sangue, mas não davam conta de beber tudo o que saía
pela fenda em sua cabeça. A vida do rapaz escorria tranquilamente pelo canto da
rua em direção a uma boca de esgoto.
A decisão fora tomada
rapidamente, mas pensada há muito tempo. Há alguns anos, para ser mais exato. Entre o impulso, a janela e o solo, foram poucos segundos de queda.
Afinal, como alguém podia
viver daquela maneira?
Como alguém podia chegar ao
fim do dia e não sentir-se estafado, justamente, por não ter feito nada? Como
ele conseguia conviver com a sensação de ser um preguiçoso, um inútil, quase um
parasita?
Como era possível?
Talvez, quem sabe, ele gostasse de viver
assim.
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