quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Ofuscante



Ele escutou o assovio, mas não conseguiu identificar sua origem. Seguiu caminhando.

Novamente, o mesmo assovio. Protegendo os olhos da claridade com uma das mãos, ele ergueu a cabeça em direção ao céu. Eram quase duas horas de uma tarde quente e de sol ofuscante. Com dificuldade, vislumbrou alguém que lhe acenava da janela de um apartamento. Seu rosto contorceu-se em uma careta, enquanto ele tentava identificar a figura oculta pela luz. Enfim, quando cruzou sob a sombra de um poste, pôde ver nitidamente de quem se tratava. Era Gabriel, um amigo de longa data, mas com o qual não mantinha muito contato. Conheciam-se já há algum tempo, mas a relação de ambos, embora sempre muito cordial, nunca fora muito estreita. Mundos diferentes, como costumava pensar Rafael.

- E aí, Rafa! Beleza?

- Opa! E aí, Gabriel! Tudo tranquilo! E com você?

- Aqui, né... - Gabriel respondeu sem vontade e riu, como que entediado com a própria situação. - Tá indo pro trampo? Quer uma carona?

- Não, precisa, cara! Imagina! Eu trabalho a umas duas quadras daqui! Fique aí em cima que tá melhor que aqui na rua! - Rafael riu, tentando não sair da sombra do poste.

- Beleza, então! Até mais! - Gabriel acenou e saiu da janela.

Rafael seguiu seu caminho até o trabalho. A pequena conversa que tivera com o amigo o fez recordar de várias coisas. Lembrou-se de como ele e Gabriel haviam se conhecido, quando Rafael ainda trabalhava como frentista no posto onde o amigo sempre abastecia seu carro. Um carro importado, aliás.

Filho do dono de uma grande empreiteira, Gabriel sempre tivera tudo do bom e do melhor: Carros, roupas, dinheiro, viagens. Gabriel, a propósito, havia passado dois anos na Alemanha, estudando e aprimorando o idioma. Ao menos era o que pensava seu pai, já que a verdade era muito diferente da versão contada por Gabriel. Com todos os custos bancados, o jovem, na época com vinte e dois anos, viajou pela Europa inteira, experimentando todas as bebidas, drogas e garotas possíveis.

Ao retornar ao Brasil, o pai ofereceu-lhe um cargo administrativo na própria empresa, o qual foi gentilmente recusado por Gabriel, que explicou ao pai que, infelizmente, não fazia parte de seu futuro vestir terno e assinar papéis. Gabriel era um artista. Músico, pintor, produtor visual. Gabriel gostava de reunir seus amigos em casa, ensaiar algumas músicas, beber e fumar a noite inteira. Gabriel gostava de pintar seus quadros e escrever seus poemas, embora eles não dessem retorno financeiro algum. Enfim, Gabriel era uma dessas almas livres, como tantas outras que, se não fosse pelos pais e pela sorte de uma vida abonada, morreria de fome.

Como alguém podia viver assim? Sem emprego, sustentado pelos pais, bebendo, fumando e gastando o tempo com futilidades de todos os tipos. Aos vinte e quatro anos, Gabriel sequer pensava em sair de casa, afinal, ali tinha tudo que precisava para viver, ou sobreviver.

Muitas vezes Rafael se viu questionando a si mesmo sobre esse julgamento acerca de Gabriel. No fundo, não seria apenas inveja disfarçada? Afinal, ele também tinha vinte e quatro anos e ainda morava com os pais, a única diferença é que ele, ao contrário do amigo rico, queria sair de casa e ter a própria vida.

A bem da verdade, Rafael era apenas mais um. Um empregado, um funcionário, um proletário, ou como a mídia gosta de vender, um batalhador. Alguém que pega no batente às sete e meia da manhã, faz milagres para almoçar em um intervalo de 45 minutos e volta para casa no fim do dia, depois de aturar clientes mal educados e um patrão obtuso, seis dias por semana.

Não. Não era inveja. Apesar da mediocridade da própria vida, Rafael não sentia inveja da mediocridade da vida alheia. Ambos eram medíocres, sim, mas de maneiras diferentes. Um pecava pela falta, o outro, pelo excesso, tanto de sorte como de oportunidades.

Como alguém podia viver daquela maneira?

Como alguém podia chegar ao fim do dia e não sentir-se estafado, justamente, por não ter feito nada? Como ele conseguia conviver com a sensação de ser um preguiçoso, um inútil, quase um parasita? 

Como era possível?

Talvez, quem sabe, ele gostasse de viver assim.


***


Às duas e meia da tarde, enquanto Rafael tentava se desvencilhar de um cliente mal educado, o porteiro encontrou o corpo de Gabriel na calçada. As pedras quentes do calçamento secavam rapidamente seu sangue, mas não davam conta de beber tudo o que saía pela fenda em sua cabeça. A vida do rapaz escorria tranquilamente pelo canto da rua em direção a uma boca de esgoto.

A decisão fora tomada rapidamente, mas pensada há muito tempo. Há alguns anos, para ser mais exato. Entre o impulso, a janela e o solo, foram poucos segundos de queda.

Afinal, como alguém podia viver daquela maneira?

Como alguém podia chegar ao fim do dia e não sentir-se estafado, justamente, por não ter feito nada? Como ele conseguia conviver com a sensação de ser um preguiçoso, um inútil, quase um parasita?

Como era possível?

Talvez, quem sabe, ele gostasse de viver assim.

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