sábado, 27 de dezembro de 2014

Corte


     - Boa tarde, Seu Antônio.

     - Boa tarde, boa tarde. Tesoura e máquina ou só máquina? - Perguntou o barbeiro.

     - Só máquina, por favor. Aquele corte de sempre. - Respondeu, enquanto se ajeitava na cadeira.

     Com o zelo que lhe era peculiar, o barbeiro abotoou cuidadosamente a capa branca em torno do pescoço do rapaz. Em seguida, com um pouco de talco em uma das mãos, delineou o corte a ser feito, passando o pó branco na nuca e um pouco abaixo das costeletas.

     Seu Antônio. Setenta e oito anos de idade e sessenta e dois de profissão. As mãos trêmulas, características dos anos vividos, tornavam-se firmes e ágeis ao segurarem as ferramentas de trabalho.

     - E o tratamento, Seu Antônio, como está indo?

   - Está indo, está indo... - Disse o barbeiro, rindo sem muita vontade. - Agora faço a tal da hemodiálise todos os dias... Eu até me sinto melhor, mas os meus braços... Bah... - Ele parou de cortar por um instante e levantou os braços, mostrando-os pelo reflexo do espelho. Havia uma grossa compressa de gaze e esparadrapo em cada um dos antebraços. O jovem sorriu, compadecendo-se com a situação do velho, que já havia voltado ao trabalho e nem percebeu o suspiro pesado do rapaz. Era incrível como, apesar das dificuldades, o barbeiro trabalhava todos os dias, das sete da manhã às sete da noite, sem perder o bom humor ou a paciência com os clientes, com as suas dores e com a própria vida.

     O zumbido da máquina preencheu completamente o silêncio que se fez após aquele último e curto diálogo. Logo, como sempre acontecia, o rapaz fechou os olhos e, sentindo aquele torpor agradável que conhecia tão bem, relaxou o corpo na cadeira e abriu-se aos pensamentos que lhe vinham à mente.

     É verdade que, independente da idade, a vida pode ser interrompida a qualquer momento e por qualquer motivo, mas, na velhice, viver se assemelha muito a estar em uma fila de espera, como quando se está no dentista, por exemplo, esperando para ser atendido. Há um outro paciente na sala, você não sabe o quanto ainda vai demorar, você sabe que pode ser chamado a qualquer momento, mas não sabe exatamente quando, então você pega uma revista para ler e matar o tempo enquanto sua hora não chega. De vez em quando, mesmo entretido com a leitura, você ouve o som incômodo da broca e se pega pensando quando será a sua vez, mas logo esquece e volta a ler, e de repente, quando você está absorto em algum texto que conseguiu capturar sua atenção na bendita revista, a porta se abre e o doutor aparece, sorrindo cordialmente e dizendo. - É a sua vez. Venha, por favor.

     Quando se dirige aos últimos anos, a vida parece se resumir a deitar a cada noite e, dependendo do seu tipo de fé - ou da ausência de uma -, não saber se o que virá a seguir será um sonho, a manhã do próximo dia ou o fim definitivo da existência.

    Era, ao mesmo tempo, estranho e triste saber que aquele corte de cabelo de quinze minutos poderia ser todo o tempo que ambos ainda tinham. Um quarto de hora e um corte de cabelo eram mais que suficientes para acabar com a convivência de dois amigos de maneira irreversível. Seu peito ficou pequeno ao pensar que poderia voltar no próximo mês e encontrar a barbearia fechada, sem aviso algum na porta, sendo possível apenas deduzir, compreender e aceitar que o que já era de se esperar, enfim, aconteceu.

    - Pronto! - Disse o barbeiro, com a voz calma e, mesmo depois de incontáveis cortes, orgulhosa por mais um serviço bem feito. O senhor deu algumas espanadas no pescoço do rapaz e, ao começar a desabotoar a capa, percebeu seus olhos vermelhos. - Tudo bem com você, meu amigo? - Perguntou o barbeiro, visivelmente preocupado com a possibilidade de ter, sem querer, derrubado talco ou alguns pedacinhos de cabelo cortado nos olhos dele.

   - Sim, sim... Tudo bem... - Disse o mais novo, rindo e esfregando os olhos, despertando de seu transe costumeiro. - Acho que esqueci de piscar... - E riu forte, dissipando de uma vez por todas aquela estranha e pesada nuvem de desconforto que os envolveu por um momento.

   Espreguiçou-se para afastar a conhecida sensação de sonolência que sempre o abraçava quando cortava o cabelo, embalada por aquela gostosa - e não menos estranha - espécie de coceira que sentia dentro da nuca ao ouvir o som repicado da tesoura, aparando o corte grosseiro da máquina com seu estalo metálico, curto e ritmado. Por fim, desceu da cadeira e deu uma última olhada no espelho, vendo seu rosto emoldurado pelas fotos antigas coladas na moldura de madeira, adornando seu reflexo confuso. Na fotos, a esposa, já falecida, e os filhos, roubados pelo mundo, pareciam dividir de seu súbito sentimento de melancolia. Respirou fundo e piscou com força, tentando secar os olhos e não mareja-los outra vez. Pegou o dinheiro em seu bolso e o entregou ao barbeiro, apertando sua mão em seguida e dando-lhe um tapinha carinhoso no ombro.

     - Obrigado, Seu Antônio... Até logo mais... - Sua voz pareceu fraquejar na última frase.

    - Até mais, até mais! - O barbeiro já estava varrendo ao redor da cadeira, recolhendo os restos de cabelo recém cortados.

     Ele saiu rápido. Só queria chegar logo em casa e abraçar a noiva. Falar de modo apaixonado e piegas sobre o filho - ou os filhos - que ainda teriam, sobre as viagens que fariam e sobre todas as boas lembranças que ainda viriam a lhes pertencer. Ele estava realmente impressionado com aquela ânsia repentina de fazer, de viver e, principalmente, de não morrer. Queria, mais que tudo, viver o que fosse possível antes de sua vida, de modo certo e inevitável, tornar-se o pavio de uma vela curta e bastante gasta, queimando vorazmente seu último pedaço de cera.

     Não conseguiu evitar que seus olhos se enchessem de lágrimas novamente. Ele estava tão, mas tão conturbado, que nem sequer percebeu o carro que, em uma fração de segundos, tentou frear e acabou jogando seu corpo sem vida contra a calçada em frente à barbearia.

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