domingo, 2 de outubro de 2011

Anjos

Sentados no topo do prédio mais alto da cidade, os dois anjos aproveitavam o fim da tarde para conversar sobre as coisas que haviam acontecido ao longo do dia. Segundo eles, e reforçado pelo consenso geral dos demais anjos, aquela era a melhor hora do dia.

Pessoas voltando para casa, depois de passarem um dia inteiro no trabalho. Mães e pais buscando seus filhos nas escolas. Criminosos à espera da noite para, enfim, poderem começar suas rotinas. O trânsito insano que, impacientemente, aguardava o avançar das horas para ceifar o número necessário de vidas e, da madrugada ao alvorecer, encher os hospitais com moribundos e lamentos. Sem dúvida alguma, aquela era a melhor hora do dia. Pessoas despindo-se dos bons modos e, no conforto e segurança de seus lares, sendo aquilo que realmente são.

- Tsc... Olha lá... – Um dos anjos, com a voz cheia de desdém, indicava uma figura minúscula e colorida em meio à multidão de casacos e ternos escuros. Uma garota de cabelos azuis, quinze anos de idade, com um piercing no lábio inferior, vestindo um moletom vermelho, cujas mangas iam além das mãos, um short jeans azul, desfiado, meia arrastão preta, com alguns furos bizarros, feitos pela própria garota e um par de coturnos. Não mão esquerda, um cigarro. Na direita, a mão da namorada. A namorada, por sua vez, tão jovem e excêntrica quanto a garota indicada pelo anjo.

- Eh... Que figura, hein? – Disse o outro anjo, com um sorrisinho. – E... Hahahahaha! Olha... Tem uma namorada! – O anjo parecia estar se divertindo muito com a cena.

- Deus... – Adael, o anjo que havia notado a garota, ergueu as mãos em direção ao céu ao evocar seu mestre. – Como eu odeio essas criaturas... – O ódio, ao contrário do que se pensava e difundia, exista entre os anjos e, inclusive, em classes mais elevadas.

- Todas? – Perguntou Enael, o outro anjo.

- Não... Na verdade, eu gosto do meu trabalho... Mas há algumas pessoas que... – Adael revirou os olhos e colocou a mão sobre o rosto, em sinal de desaprovação. – Por favor... Olhe para aquilo... – Indicou novamente a garota colorida. Enael, em silêncio, apenas observava e ouvia o colega. – Eu, simplesmente, odeio esse tipo de criatura... Um adolescente, um ser vazio, que ainda não sabe o que quer, não sabe o que vai ser, não tem certeza de nada, mas, aos olhos dos outros, quer ter certeza de tudo... Olhe! Olhe para aquilo! Fumando, como se fosse um adulto... Bebendo, caindo pelos cantos, sendo assediada e violentada pelos “amigos”... – Adael gesticulou, representando as aspas. – Por favor... Ao menos espere ficar um pouco mais crescida para não parecer tão ridícula!

- Ah, Adael... Você sabe como são os jovens... Eles precisam se afirmar... Precisam dizer qual é o seu lugar no mundo... – A voz de Enael era tranquila, quase paternal. Ao contrário de Adael, Enael ainda não havia chegado a tal estágio de desilusão com a raça humana. Ele, diferente de seu colega, ainda se permitia sentir compaixão por todos.

- Eles precisam se afirmar? Hahahahaha! Como? Agindo como idiotas? Ou melhor, agindo como tantos outros idiotas? Desculpe-me, Enael, mas eu não consigo entender como alguém mostra o seu lugar no mundo, misturando-se a uma multidão de semelhantes e agindo assim, de modo tão... Estúpido... Por favor...

- Adael... – Disse Enael, com ternura, repousando a mão sobre o ombro do amigo.

- Não, Enael! Não adianta! Eu não consigo compreender! Mesmo com toda essa sabedoria privilegiada que temos, concedida diretamente pelo Mestre, eu não entendo! Para garotas, é quase uma moda beijar outras garotas, mesmo que no seu íntimo, bem lá no fundo, exista uma repulsa gritando! Enael, meu amigo, eu entendo que há pessoas diferentes, sim. Há espíritos que nascem presos em corpos inadequados, mas esse é um caso diferente. Essas crianças brincam, Enael! Elas brincam com a natureza humana! Os garotos, então... O que é isso? É moda? É um “grito de liberdade”? Ora! Por favor! Então eles estão gritando por uma liberdade que sequer conhecem...

- Talvez seja porque as pessoas não entendem como essa parte funciona... Você, eu e todos os outros seres do nosso mundo sabemos, Adael... Essa questão da sexualidade é algo mutável, algo que...

- Ok, Enael... Eu sei... Mas mesmo assim... Bom, mas que seja! Isso é o de menos! E as drogas? E as bebidas? E aqueles pedaços de metal cravados no corpo?

Enael, com o olhar complacente, olhou para o piercing cravado no lábio da jovem. Os olhos de um anjo, diferentemente dos de um humano, viam muito além. A alma, agredida, silenciosamente pedia que aquele corpo estranho saísse dali. A carne, incomodada, insistia em fechar aquela ferida. A consciência, adormecida, apenas se submetia à vontade cega e furiosa do instinto de autoafirmação. Com o olhar entristecido, voltou-se para Adael. – Acho que começo a entender...

- Deus! Há tanta coisa errada! Há tantos desenganos! Tanta corrupção na história verdadeira! Se fôssemos contar a verdade a eles, Enael, precisaríamos de, pelo menos, três vezes o volume da tal Bíblia, apenas para as erratas dessa história mal contada!

- Mas isso não é culpa dos que estão aqui, hoje, Adael... O erro foi cometido há muitos anos... Culpar o presente pelos erros do passado é como julgar um filho pelos crimes cometidos pelo pai...

- Eu sei, eu sei... Desculpe... Acabei me desviando... É que... É tanta coisa!

- Tudo bem, eu entendo. Sua dor é perfeitamente compreensível. É estranho ver algo tão complexo, tão perfeito ser usado de maneira tão errada, não é?

Adael apenas lançou um olhar confidente para Enael. – Estranho demais. Triste demais, eu diria.

E enquanto os anjos filosofavam acerca da estupidez humana, o sol terminou de descer no horizonte. A noite estava começando e, junto dela, novas histórias também encontravam seus enredos. Novos começos e novos fins. Naquela mesma noite, outros personagens da vida seriam criados e destruídos. Outras gravuras seriam desenhadas nas páginas em branco do tempo, enquanto outras seriam apagadas pela mão imparcial da morte.

- Não quero aborrecer você, meu amigo, mas preciso concluir meu pensamento.

- De modo algum. Por favor.

- Veja aquela jovem, Enael. A jovem sobre a qual falávamos... Agora ela irá para casa. Uma bela casa, diga-se de passagem. A mãe, professora, já vai estar em casa, na sala, provavelmente, esperando pela filha. Essa, por sua vez, vai subir direto para o quarto, sem cumprimentar, sem dar um beijo sequer na mãe. Depois, ao chegar em seu quarto, irá repetir o seu ritual diário, conversando com os amigos, através daquelas máquinas que, ao mesmo tempo, aproximam e afastam as pessoas. E o assunto principal, como sempre, será a falta de compreensão com o seu mundo, por parte dos pais. Ela, provavelmente, difamará o pai, médico, por passar mais tempo no hospital do que em casa. E sabe o que é o mais engraçado? É que o pai, entristecido, não vê a hora de chegar em casa para, em vão, tentar uma aproximação com a filha. Eu escuto, Enael, todas as noites nas preces desse homem, um pedido por mais tempo, por mais chances, por menos trabalho e mais oportunidades para ficar com aqueles a quem ele ama. O curioso é que, tamanha é a preocupação dele com o bem estar da sua família, que, inconscientemente, ele esquece das próprias orações e se atira no trabalho, pensando no futuro, pensando na carreira que a filha nunca vai seguir, mesmo com todo o dinheiro que pretende juntar. Ele reza, Enael, todas as noites, na esperança de que a filha ache seu caminho, mas pede isso em silêncio, pois tem medo de ofendê-la e magoá-la se, por acaso, ela vier a saber o que ele pensa do modo como ela leva a vida. Hoje ele vai sair mais cedo, Enael. Confesso que foi uma surpresa para mim, quando ele teve esse pensamento. Decidiu sair mais cedo para encarar seus medos. Ele está decidido a lutar contra a resistência da própria filha e abraçá-la, a qualquer custo. Hoje ele vai sair mais cedo para chegar em casa e dizer, enfim, que a ama e pedir desculpas pela ausência. Ele vai sair mais cedo, Enael. Você entende? Ele vai sair mais cedo... Mais cedo! – A voz embargada do anjo, ao dizer aquelas últimas palavras, anunciava um pranto dolorido e silencioso. Uma lágrima negra escorreu do canto de um dos olhos do anjo que falava. Enael, em silêncio, contemplou e dividiu a dor do amigo.

- Guarde essa lágrima, Adael. Guarde para depois.

- Sim. Guardarei. Temos trabalho a fazer.

- Sim, muito trabalho.

- Eu sei... É hoje, não é?

- Sim... É hoje, Adael... Como você disse, ele saiu mais cedo.

O trânsito.

Lá embaixo, o fluxo de pessoas começava a ceder espaço ao amontoado de luzes e sons em movimento. Sirenes, buzinas, faróis. Uma marcha monótona, mas cujos pontos de parada e partida nunca se repetiam.

A algumas quadras dali, dentro de alguns minutos o carro de um homem será esmagado e jogado violentamente de cima de um viaduto. O responsável pelo acidente, embriagado, não irá morrer. A vítima, um médico de quarenta anos, morrerá com o segundo impacto, levando consigo as intenções, as palavras e o discurso quase pronto que sua filha adolescente não chegará a ouvir. Seus colegas de trabalho, na mesma noite, estupefatos, lamentarão a sua morte por muito tempo. E, como é natural a qualquer ser humano, alguém dirá, com aquele tom sombrio e profético que sempre impregna as palavras quando se fala sobre a morte, que, mesmo que ele saísse no horário de sempre, aquela era a sua hora de morrer.

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